O tema “colapso de um projeto nacional” para mim tem sido recorrente. Mas, como que obedecendo à misteriosa lei da sincronicidade, já não sou eu e sim ele é que volta a me inquietar.
Tipo… zapeando numa sessão da tarde, sem querer, assistindo a um filme sobre as vivências de jovens confinados num subúrbio árabe de Paris, percebo o quanto são semelhantes aos nossos “capões-pecado”, assinalando, de passagem, que o título do livro do Ferrez se tornou emblemático – de nome próprio, passou a lugar comum, ou melhor, lugar nenhum, se quiser ser mais precisa.
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No filme, os jovens descrevem o bairro como um lugar onde nada dá certo, onde ninguém faz planos, nem pensa no futuro. Aliás, não existe futuro. Então penso nos jovens que me são bem próximos, que não vivem na periferia, que moram em bairros classe média, que freqüentam a universidade, mas também não fazem planos, não pensam no futuro, até porque não existe futuro.
Então recorro ao Paulo Arantes, quando ele diz [1]:
"Tenho procurado identificar o vetor desagregador de todas essas mudanças. Não é de hoje a sensação de que o país anda em círculos, quando não se sacrifica uma geração inteira justamente para não retroceder. A sensação de que algo anda sem sair do lugar, figurada nas canções do Chico Buarque, além do enorme girar em falso, entre animação e fastio, identificado por Roberto Schwarz na hélice que empurra a narrativa machadiana em direção a coisa alguma, nulidade, porém, de uma classe proprietária confortavelmente instalada em dois mundos, e culmina no movimento delirante de Cidade de Deus (o livro, não o filme), que também não leva a lugar algum. Lembro de Wilma Areas ter comentado, referindo-se ao poder neutralizador dos esforços tanto lícitos quanto ilícitos dos pobres para mudar de situação, ali também as coisas não andam e nada acontece. Quanto aos artistas e sua função sismográfica, tudo bem, mas e nós? (os intelectuais).”
“O país está entrando em sua terceira década perdida, quase uma geração, e o melhor da nossa crítica, uma vez enunciado esse teorema crucial, por sua vez, parece que passou a andar em círculos, mimetizando as obras comentadas. Segundo a teoria do ornitorrinco do outro Chico, o de Oliveira, nossa sociedade derrotada comparece, mas a cena agora é escancaradamente materialista e coisas ao menos mudam de lugar.”
Ele observa que o tal colapso – do projeto nacional – deixa de ser um naufrágio na praia, uma desconexão imerecida, para exprimir uma integração total, perversa a mais não poder. O nosso trabalho informal em metástase anuncia o futuro do setor formal mundo afora. No Brasil está um dos grandes laboratórios em que a terceira revolução industrial, regime financeiro de acumulação etc., precipitou a universalização do trabalho abstrato.
Mike Davis descreveu esse panorama avassalador como um mundo-favela atravessado pelo tumulto de um gigantesco proletariado informal. Tudo isso em linha com a versão crítica (pois há uma apologética) da tese da brasilianização do mundo, algo como a extensão planetária da nossa fratura. Saber se somos ou não viáveis não faz o menor sentido agora. A idéia substantiva do desenvolvimento supõe um quadro de normalidade capitalista que não resiste ao menor teste de realidade, que o digam as horrendas sociedades que são as máquinas chinesa e indiana de crescimento.
No Brasil, vivemos num estado de emergência econômica permanente, e a melhor imagem desse "admirável mundo novo do trabalho" é a da empregada doméstica vivendo da mão pra boca, sem registro em carteira, jornada de trabalho para lá de elástica e indefinível, porém proprietária dum celular.
O que casa admiravelmente com a visão das atrizes do cinema, conforme já observei em outra parte [2], também vivendo da mão para a boca ou de joelhos, fazendo felação no parceiro – embora, é claro, não fumem (leia mais).
Mas para esse "girar em falso" do país, encontrei um texto [3] que cai com uma luva. E a razão residiria na "persistência do atraso", na mentalidade da elite brasileira, que prossegue escravista, racista e tacanha.
Segundo o autor, a história contemporânea do Brasil tem sido a história da espera do progresso. Como o progresso não veio, senão de forma tardia e insuficiente, essa história se transformou na história da espera da revolução. Mas a revolução também não veio (afinal, devia ser esperada ou devia ser feita?). A história da sociedade brasileira tem sido uma história inacabada, que não se conclui, que não chega ao fim de períodos definidos, de transformações concluídas. Não é uma história que se faz. É uma história por fazer.
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