Rudolfo Lago*
No caso do personagem do poema de Augusto dos Anjos, “ninguém assistiu ao formidável enterro da sua última quimera”. No caso do PT, o “enterro da última quimera” foi transmitido ao vivo e em cores pela TV Senado, diretamente da sessão do Conselho de Ética do Senado, no dia 19 de agosto de 2009. Agosto, sempre agosto, fatídico mês a marcar as grandes tragédias nacionais. Eis que novamente agosto agora sepulta de vez o partido político de história mais bonita já contada neste país.
Dirão aqueles que Nelson Rodrigues costumava chamar de “idiotas da objetividade”: “Morreu como, rapaz? O PT está aí, forte, à frente do governo mais popular da história”. Vivo e forte como mera sigla formada por duas letrinhas agora sem maiores significados, está mesmo, é verdade. O que morreu, no dia 19 de agosto de 2009, foi o sonho, a quimera. Nesse dia, três fatos marcaram o abandono completo dos ideais que fundaram o Partido dos Trabalhadores, e a sensação de que, com ele, aconteceu o mesmo processo de deformação que marcou todos os demais partidos políticos brasileiros que antes chegaram ao poder: o PMDB, símbolo máximo da resistência democrática à ditadura militar, virado na atual geléia de poucos princípios e representante apenas de líderes e interesses regionais; o PSDB, criado como reação à transformação peemedebista, refúgio dos bons, transformado naquilo que Sérgio Motta chamou um dia de “partido ônibus”, onde sempre cabe mais um, não importa o que realmente pense ou defenda.
Criado nos anos 80, naquele momento de renovação democrática, o PT foi um sopro de modernidade nas discussões empoeiradas da velha esquerda. Foi o PT que nos apresentou às bandeiras ecológicas que começavam a surgir na Europa. Foi no PT que se ouviu falar pela primeira vez de “desenvolvimento ecologicamente sustentável”, de respeito “aos povos da floresta”, da possibilidade de sustentação de uma economia que não fosse meramente devastadora da natureza, mas que buscasse aplicar uma forma mais inteligente de relação com ela.
Primeiro ato do “enterro da última quimera”: Marina Silva anuncia a sua desfiliação do PT. Não foi Marina quem saiu do PT, foi o PT que saiu de Marina. No poder, o presidente Luiz Inácio da Silva e a sua escolhida para sucedê-lo, Dilma Roussef, abandonaram todo o ideário inaugurado pelo PT com Marina e Chico Mendes e optaram por um caminho desenvolvimentista brutal como a da ditadura militar: grandes hidrelétricas alterando o curso dos rios, grandes estradas invadindo florestas. Que interessa a desova dos peixes? Que interessa animais desabrigados e árvores queimadas? O país tem que crescer. Se isso provocar o colapso do país e do planeta no futuro, eu não vou estar aqui pra ver, que se dane. Eu sou aqui e agora. Lula, primeiro e único. Simples assim. Por 30 anos no PT, Marina tinha certeza de que poderia optar, sem prejuízo econômico para o país, por um outro caminho. Quando teria a oportunidade de provar isso, foi alijada, demitida do Ministério. Sai do PT para manter seu sonho, a sua quimera, “mantenedora
de utopia”, como classificou-se.
Segundo ato do “enterro da última quimera”: no Conselho de Ética, o senador João Pedro (PT-AM) lê uma carta do presidente do PT, Ricardo Berzoini, “orientando” todos os petistas a votarem pelo arquivamento sumário de todas as denúncias contra José Sarney. Em 1985, o PT expulsou três deputados que insistiram em votar em Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. O partido considerava “inaceitável” fazer parte de uma aliança com gente como José Sarney e outros políticos oriundos da ditadura militar. Naquele momento, pouco importou ao PT que a eleição de Tancredo, com a aliança que fizera, era o único caminho possível para por fim à ditadura. O partido tinha de manter a sua “pureza”. No dia 19 de agosto de 2009, fazer uma aliança com José Sarney e o PMDB não era mais a “única opção” para livrar o país de um regime de exceção. Era uma escolha política. Outras escolhas poderiam ser mais difíceis. Poderiam até mesmo levar o PT a um risco de derrota eleitoral. Mas ficar com Sarney e o PMDB era uma escolha. E o PT não teve dúvidas em abrir mão de sua “pureza”. Ordenados por Berzoini, os senadores arquivaram os processos contra Sarney. Ficou o PT, enterrou-se a quimera.
Terceiro ato do “enterro da última quimera”: num emocionado discurso, o senador Flávio Arns (PT-PR) declara que toda aquela situação “o envergonha”. Na sua formação, o PT foi o habitat da igreja progressista. Foi a partir da igreja que se aproximou de boa parte das suas bases eleitorais, cresceu e ramificou-se pelo país. Foi assim que mostrou como os ideiais socialistas aproximavam-se dos princípios cristãos de fraternidade e solidariedade. Flávio Arns, sobrinho de Dom Evaristo Arns e de Zilda Arns. Também deixará o PT.
Mais feliz talvez tenha sido mesmo o personagem de Augusto dos Anjos: “Ninguém assistiu ao formidável enterro da sua última quimera”.
*Jornalista, com 23 anos de profissão.
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