Márcia Denser*
Acredito que agora, depois de 1º de julho de 2006, ficou claro para milhões de brasileiros o que significa colocar os interesses pessoais, monetários e egotistas acima de valores simbólicos tais como futebol-arte, coragem, amor à pátria, honra, orgulho ou dignidade. O efeito imediato de tal atitude foi dissolver e frustrar a esperança e a ilusão coletivas, bem como trair uma das mais caras tradições de todo o país, em escala sem precedentes.
Porque nossa seleção entregou o jogo, não é mesmo? E futebol é um esporte de equipe, mas uma equipe não é a mera soma de valores individuais, antes exige a integração harmoniosa do todo como condição sine qua non para fazer valer o talento pessoal.
Aqui reporto-me a um filme de Oliver Stone, Um domingo qualquer, cuja trama aborda a problemática do futebol americano nos anos 90, as relações de um técnico (Al Pacino) de futebol americano com a equipe de craques e os dirigentes do clube, focalizando o choque de gerações e a mercantilização do esporte. E a nova geração se caracteriza por descartar o velho, a tradição, como "superado", "antigo", por desprezar a ética e a solidariedade de grupo em nome da fama e do interesse personalista. Naturalmente, como demonstra Oliver Stone, essa estratégia, que "desromantiza", "privatiza" e subordina a interesses mesquinhos não só não dá certo, como destrói o próprio esporte ao privá-lo de alma.
Para aqueles que defendem ardorosamente essa cultura do dinheiro e do lucro pessoal como valor máximo da civilização, a ser ensinada a seus filhos e netos e bisnetos, também deve ter ficado claro até onde pode chegar o neoliberalismo futebol clube, isto é, a parte alguma.
Porque esta fica para a história como a seleção dos esquecidos.
Individualmente, nossos craques são os melhores do mundo. E, individualmente, ricos e famosos demais para se arriscar em nome da pátria cujas tradições e instituições também já não respeitam, principalmente quando manifestam, publicamente via satélite, que seu presidente "bebe pra caramba", demonstrando burrice, preconceito e ausência de auto-respeito enquanto cidadão brasileiro. Porque não se trata de ser Lula, dum presidente eleito legitimamente por 50 milhões de brasileiros, mas da presidência em si como instituição etc.: será que é preciso ficar explicando isso como se o mundo inteiro fosse débil mental?
PublicidadeAgora ficou claro o que significa a privatização de valores coletivos tais como "futebol-arte" e "nacionalismo"? Assim como a arte, o futebol define-se por uma cultura e uma prática cumulativas, que implica tradições (as gloriosas) precedentes, aperfeiçoamento ao longo do tempo, quando então a quantidade de craques dá saltos qualitativos em grupos e gerações, representados por equipes como as da Hungria da Copa de 54 ou da Holanda de 74, que não ganharam a Copa mas ficarão para sempre na memória coletiva, ou a do Brasil de 70, que ganhou inquestionavelmente, a despeito do regime militar.
Porque, naquele mesmo 1º de julho de 2006, milhões em todo planeta também testemunharam o empenho, a dor, o pranto, o desespero da equipe inglesa, tanto quanto o empenho, a garra, a comoção, a explosão alegre do time português ganhando nos pênaltis.
Porque não se trata da derrota, de termos perdido um jogo e vencido quatro, sobretudo porque as vitórias anteriores – fáceis demais, mornas demais – perante equipes flagrantemente inferiores, não convenceram. E este é o resultado nulo de um "futebol de resultados". Não só em futebol, mas em tudo na vida, importa o processo, o encadeamento de ações e motivações, o desenrolar dos fatos que determinam o julgamento histórico se tais fatos foram realmente vitórias ou derrotas. Porque em nossos dias, o julgamento da história é imediato e coletivo.
Enfim, eis as lições inesquecíveis desta seleção dos esquecidos.
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