Claudimar Barbosa da Silva*
O Brasil acaba de adotar uma das mais rigorosas leis de trânsito do mundo, numa importante tentativa de acabar com a verdadeira guerra das estradas, que ceifa a vida de 50.000 pessoas por ano e deixa outras centenas de milhares mutiladas, incapacitadas para o trabalho e, em razão disso, acabam contribuindo para aumentar o déficit da previdência social, uma vez que, ainda jovens, acabam aposentadas por invalidez.
Leia também
A Lei Federal nº 11.705, de 19 junho de 2008, ao alterar o Código de Trânsito Brasileiro, acaba com a tolerância quanto à ingestão de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa antes de dirigir; além de estabelecer multa e suspensão de direito de dirigir pelo prazo de 12 (doze) meses, a nova lei preconiza que ao condutor que não quiser se submeter aos testes e exames clínicos disponíveis para a constatação de alcoolemia também serão aplicadas as citadas penalidades administrativas.
Logo após a publicação da nova lei, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil insurgiu-se contra o referido dispositivo, por entender que o mesmo feriria a Constituição Federal, uma vez que, pela presunção de inocência, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo; além disso, sustenta a OAB, o motorista apanhado dirigindo sob efeito de álcool ou outras drogas deve ter o direito de defesa, não podendo ter a sua carteira de habilitação apreendida no ato.
Sem questionar o fato de que tal atitude, vinda da OAB, significa um imenso retrocesso no combate à violência no trânsito, há que se destacar que, muito embora seja verdade que ninguém pode produzir prova contra si mesmo, também é verdade que a lei pode estabelecer casos de inversão do ônus da prova, assim como prever a presunção de veracidade, quando, no interesse público, o comportamento de alguém esteja a impedir a aplicação da lei ao caso concreto.
É facilmente constatável quando alguém se apresenta em estado de alcoolemia. Um policial rodoviário experimentado em suas funções é perfeitamente capaz de definir se um condutor de veículo está sóbrio ou se o mesmo se encontra sob o efeito de álcool ou outras drogas.
Além disso, a situação em foco, há que ser considerada em face de precedentes legislativos e do próprio Poder Judiciário, como, por exemplo, no caso dos exames que objetivam o reconhecimento de vínculo genético, para o reconhecimento ou a exclusão de paternidade, em que foi editada pelo Superior Tribunal de Justiça a Súmula 301, estabelecendo que “em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade”.
Aliás, a referida Súmula, apesar de se reportar a antecedentes que remontam ao Código Civil de 1916, tem inspiração direta no art. 232, do Código Civil de 2002, o qual estabelece que “a recusa à perícia médica ordenada poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame”, em complemento ao disposto no seu art. 231, que preconiza: “aquele que se nega a submeter-se a exame médico necessário não poderá aproveitar-se de sua recusa”.
Ora, não consta que a a Ordem dos Advogados do Brasil, por seu Conselho Federal, tenha se insurgido, igualmente, quanto à redação de tais dispositivos, ambos constantes do novo Código Civil; tais dispositivos têm exatamente a mesma razão de ser do que agora foi estatuído para a legislação de trânsito: evitar que aquele que se negue a submeter-se a exame venha a tirar proveito da sua própria recusa.
Aliás, tais dispositivos vêm sendo analisados pelos mais brilhantes juristas brasileiros que, salvo raras exceções, aprovam a disciplina legal epigrafada. Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (Direito Civil: Teoria Geral. 6. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006, p. 656), embora critiquem a redação do art. 232, do Código Civil, por não estabelecer uma presunção expressa, defendem sua releitura à luz do balizamento constitucional, para que a recusa injustificada, por revelar o “temor da descoberta da verdade”, implique em “presunção legal de verdade dos fatos, sob pena de repristinar-se tempos felizmente passados de discriminação entre filhos e dificultar sobremaneira o exercício da vida digna”. No mesmo sentido, Sílvio de Salvo Venosa (Direito de Família. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 320), considera que o réu – no sentido de sujeito passivo da relação processual – tem o “ônus probatório de realizar o exame, cuja recusa opera presunção contra ele”.
Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça interpreta a recusa do réu, em tais casos, como “inversão do ônus da prova e conseqüente presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor” (STJ, RESP 557365 – RO, Min. Nancy Andrigui, 3ª Turma, DJU 03/10/2005); tal entendimento exsurge do princípio provindo do direito romano, segundo o qual, ninguém pode se prevalecer da própria torpeza (“noeminem allegare potest sui cuique turpitudinem”).
Tanto lá, no Código Civil, como cá, na nova legislação de trânsito, o princípio a ser observado é o mesmo, sob pena de o direito ficar jungido à vontade de uma só pessoa, em detrimento de toda a sociedade; além do mais, a inversão do ônus da prova vem sendo adotada sempre que há um interesse maior a ser protegido – no caso o interesse público – em detrimento de um menor – no caso o do motorista que conduz seu veículo sob efeito de álcool ou de outras drogas e que se recusa a se submeter aos exames previstos em lei para comprovador o seu estado de alcoolemia.
No caso em foco, a inversão do ônus da prova tem em vista a salvaguarda dos interesses coletivos e difusos, para usar uma linguagem emprestada do direito administrativo e do consumidor, de todos aqueles que se utilizam das vias de trânsito; nesta relação – que envolve condutores sóbrios, condutores sob efeito de substância psicoativa e pedestres – há uma situação de evidente desigualdade jurídica, que está a justificar a opção do legislador pela inversão do ônus da prova; o condutor que dirige o seu veículo sob o efeito de substância psicoativa representa um risco muito maior de causar acidente, ceifar vidas e causar mutilações, do que os condutores sóbrios.
Portanto, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que tem se destacado na defesa dos interesses públicos, difusos e coletivos, corre o risco de tropeçar nas próprias pernas, caso venha a defender perante o Supremo Tribunal Federal os interesses menores dos condutores de veículos automotores que, dirigindo sob o efeito de álcool e outras drogas, queiram fazer prevalecer a sua vontade para, assim, não serem considerados sob efeito de substância psicoativa, ficando, portanto, à margem das sanções previstas na nova lei.
Artigo publicado em 03/07/2008. Última atualização em 12/08/2008.
*Claudimar Barbosa da Silva, 45 anos, é advogado e consultor municipal
Deixe um comentário