Eduardo Fernandez Silva*
Nunca antes na história deste país, pretendeu-se implantar um projeto tão grande quanto o trem-bala (TAV) Rio-São PauloCampinas. Natural, pois, que muitos argumentos em sua defesa sejam apresentados, e que se demonstre que a iniciativa trará grandes, claros e palpáveis benefícios à maioria dos brasileiros. Assim, vejamos os principais argumentos apresentados em sua defesa.
O primeiro foi o de que o trem seria implantado exclusivamente com recursos da iniciativa privada. Quem fez tal afirmação inicialmente foi uma empresa italiana absolutamente sem experiência em transporte ferroviário, como se pode constatar em seu endereço na rede mundial de computadores. No entanto, grupo de trabalho constituído pelo Ministério dos Transportes acreditou na promessa, apesar da inexperiência da empresa e do fato de que não existe, no mundo, trem-bala que funcione sem elevados subsídios. Ainda recentemente, alguns defensores do TAV teimam em afirmar que ele será bancado pela iniciativa privada, embora defendam, também, a aprovação de Medida Provisória que autoriza a concessão de empréstimo subsidiado, e praticamente sem garantias, ao eventual vencedor do leilão! O argumento, pois, era falso, e assim continua.
Outro argumento dizia ser o trem-bala essencial para o sucesso da Copa do Mundo. Hoje, estamos a três anos da copa, e a cinco da Olimpíada. Afirmar que o trem-bala ajudará no sucesso desses empreendimentos é tão falso quanto afirmar que um bebê humano nascerá saudável, após apenas três meses de gestação. Afinal não há, no mundo, trem-bala que tenha ficado pronto com menos de dez anos de obra; porque no Brasil seria diferente? Aliás, embarcar hoje no projeto do trem-bala dificultará o sucesso da Copa, pois demandará recursos públicos que já se revelam escassos para as obras essenciais ao evento. Novamente, o argumento de defesa era e permanece falso.
Os benefícios do trem-bala ao meio ambiente também são lembrados para justificar o projeto. É um argumento fraco, na melhor das hipóteses, ou falso, na pior, pois os benefícios ambientais do projeto são questionáveis. Embora, na operação, o trem emita menos que caminhões, estes continuarão a rodar, pois o trem não levará carga, nem mesmo se contar com o dinheiro dos Correios, como se noticia. Além disso, o projeto exigirá grandes obras em área de Mata Atlântica, e o desmonte de milhões de toneladas de terra retirada de túneis, cuja disposição final não está equacionada.
São fracas as hipóteses em que se baseiam as previsões da demanda pelos serviços do trem-bala, e fraquíssimas as previsões de custo do projeto. A demanda está superestimada e os custos, subestimados, repetindo procedimento usual daqueles que querem defender uma obra pela obra, e não pelos possíveis benefícios da sua operação. Segundo notícias recentes, empreiteiras que estudam o projeto estimam os custos não em R$ 34 bilhões, como fez o governo, mas em R$ 53 bilhões! Aliás, sobre os custos, ressalte-se que o próprio consórcio Halcrow-Sinergia, contratado pelo BNDES para realizar o estudo, afirma que os custos de contingência não foram considerados, seguindo as orientações do governo federal. Quem terá dado tal orientação? Mesmo considerando-se que a participação pública no trem-bala diminui o risco do setor privado, não seria essencial que se conhecesse o risco do setor público?
Outros argumentos de defesa continuam frágeis. Dizem que o trem-bala beneficiará os municípios por onde passará, mas ninguém diz como, nem que os moradores desses locais serão beneficiados, nem tampouco se não haveria investimentos alternativos que trariam benefícios mais concretos, e mais afinados com as necessidades da maioria; outros afirmam que as festividades por ocasião da festa de Nossa Senhora de Aparecida serão mais belas, e que o afluxo de romeiros à cidade ajudará a tornar a obra viável; já houve quem dissesse que, com a implantação do trem-bala, o Brasil se alinhará às principais nações do mundo no que se refere ao transporte de passageiros. Se esqueceu que, mesmo se a obra vier a ficar pronta, apenas poucos moradores do eixo Campinas-São Paulo-Rio de Janeiro utilizarão seu serviço, e que todos os demais brasileiros continuarão, como hoje, longe de disporem de um transporte urbano ou interurbano comparável não às principais nações do mundo, mas mesmo a alguns países latinoamericanos.
Outro argumento (?) de defesa é que a implantação do trem-bala virá alavancar o transporte ferroviário no Brasil. Ora, se é esse o objetivo, por que não implantar linhas de trens de velocidade normal, que sirvam a mais passageiros e destinos, e também à carga?
Fala-se, ainda, que os ganhos do projeto decorrerão da transferência de conhecimentos tecnológicos. Outro argumento falho, uma vez que nem se sabe qual será a tecnologia vencedora no leilão; além disso, para que queremos esse saber fazer, se não há perspectiva de outros trens dessa natureza no Brasil? A propósito, alguém acredita na promessa de que o trem-bala, posteriormente, chegará também a Belo Horizonte e a Curitiba? Alguém já disse quando isso ocorrerá, quanto custará, de onde virão os recursos e quais serão os projetos preteridos para abrir espaço no orçamento para esse trem-bala ampliado? Alguém se lembrou de que tal ampliação seria ainda mais cara que, por exemplo, a Transamazônica, obra incompleta após mais de quarenta anos de iniciada?
Os defensores do projeto, parece-me, jamais se manifestaram sobre um aspecto importante: um dos grandes problemas brasileiros é a elevada concentração de gente e de atividade econômica no Sudeste, em particular no eixo Rio-São Paulo. A construção do trem-bala virá agravar esse problema; será que inexistem projetos menos concentradores?
O leilão do TAV já foi adiado duas vezes: uma, devido à existência de apenas um interessado; outra, em razão de pressões dos interessados, que pleiteiam ainda maiores facilidades. Será que nem mesmo essas dificuldades de se encontrar interessados apesar da promessa do dinheiro fácil, para os amigos, da Previ, da Petrus e de outros , alertarão os governantes sobre a possível conveniência de se dar preferência a projetos alternativos e mais adequados ao país?
Para não nos alongarmos, ainda dois outros argumentos (?) apresentados em defesa do TAV. Numa entrevista recente, um dos lobistas em prol da obra, questionado sobre se a lentidão do tráfego urbano no Rio e em São Paulo não retiraria as vantagens da rapidez do trem-bala, saiu-se com a seguinte pérola: sim, isso atrapalhará; logo, serão feitas obras que reduzirão os problemas de trânsito nessas capitais. E mais não disse!
Outro defensor, em recente artigo publicado em revista do setor ferroviário, afirma que estão equivocados aqueles que analisam o trem-bala apenas pelos serviços de transporte que prestará, pois a verdadeira razão e justificativa do projeto seria o fato de que ele tornará o Brasil referência mundial no desenho, produção e operação de trens-bala. Ou seja, segundo o autor, depois dessa empreitada, o Brasil vencerá japoneses, franceses e chineses nas concorrências para implantar outros trens-bala mundo afora! Parece que, com o trem-bala brasileiro, virão também o nível educacional, de habitação, de desenvolvimento tecnológico e de experiência ferroviária de que desfrutam aqueles países…
Não obstante a precariedade dos argumentos em sua defesa, o governo parece determinado a implantá-lo, sabe-se lá por quais motivos. Nesse quadro, os defensores do projeto preferem, ao invés de responder às críticas, atacar quem as faz. Fazendo isso, repetem um grave e antigo erro de lógica que, no entanto, é reconhecido como estratagema de oratória! A propósito, devemos nos lembrar que governar com a oratória, e não com a razão, é prenúncio de problemas crescentes.
A grande questão, porém, é como o nosso sistema político permite que se comprometa tanto dinheiro público num projeto que apresenta, em sua defesa, apenas argumentos fracos, falhos ou simplesmente falsos. A verdadeira reforma política deveria criar mecanismos mais democráticos de decisão sobre o uso dos recursos públicos, o que tenderia a impedir tamanha transferência do dinheiro dos nossos impostos para bolsos privados, sem claros benefícios à população.
*Mestre em Economia, Professor de Logística IESB
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