Márcia Denser
Cresci durante os anos 60, amadureci literariamente nos 80 e cá estou – cá estamos – no final de 2007. Pensando retrospectivamente (e os finais nos convidam a fazer balanços), durante todos esses anos vi e vivi grandes transformações em nossa sociedade: o Brasil da ditadura e o Brasil da abertura, do nacional-desenvolvimentismo a este pós-paganismo consumista sem inconsciente e sem natureza – porque a cultura de mercado se tornou sua única natureza, interna e externa, corpo e alma, isto é, sem deuses. Pós-paganismo que se move vertiginosamente, mas gira em falso.
Porque há um abismo entre a sociedade dos anos 60 e a de 2000, e isto se torna evidente através da literatura.
No modernismo, de Drummond a Guimarães Rosa, existia uma “aproximação simpática” ao Outro, abria-se espaço ao discurso dos oprimidos, dos excluídos, daqueles que não têm voz – empregadas domésticas, trabalhadores rurais – a fim de deixá-los falar de seus sonhos, razões, esperanças, emoções, costumes e crenças. Era uma aproximação pelo lado luminoso, positivo, uma vez que correspondia a uma atitude e visão de mundo ideológicas. Afinal, em Grande sertão: veredas, um dos maiores romances brasileiros, o personagem principal não é Riobaldo, um jagunço? Regionalismos à parte, que estes não se aplicam à Rosa.
Já na década de 70, a partir duma crise generalizada no mundo das artes que traduz o fim da busca da originalidade do primeiro modernismo, aliada ao enfraquecimento das ideologias de esquerda, e, no Brasil, pós-64, com a derrota política da esquerda e o esvaziamento do nacional-desenvolvimentismo, surgem os primeiros grandes textos chamados pós-modernos, onde essa aproximação se inverte, torna-se “negativa”
Ao assumir o discurso do Outro, o escritor representa-o pelo lado obscuro, a sombra, a imagem em negativo do marginal/pobre/oprimido/excluído, que é ignorante, mesquinho, cruel, insensível, grosseiro, sem nenhum servilismo, admiração e contemplação para com os elementos da classe dominante (à qual, ironicamente, pertence o escritor). Para com aqueles que o excluem e mantém em sua condição miserável, a exemplo dos marginais de Feliz ano novo de Rubem Fonseca, significativamente censurado durante 14 anos pelo regime militar.¹
Devido à ausência dum projeto social coletivo, ao excesso de individualismo, à crise da subjetividade pelo fato de se viver num caos social e sem perspectivas, à submersão numa cultura de mercado, ainda nesse período surge no Brasil uma literatura claustrofóbica, cujo horizonte é a telinha da tevê, marcada por crime, sexo, violência, conflitos mesquinhos e sem grandeza. Na produção literária pós-80, ao invés do Sujeito ou Narrador Onisciente do Modernismo, temos os Diversos Sujeitos Inconscientes do Pós-Modernismo, ou almas parciais, ou várias posições descentradas do sujeito que expõem o nervo da Má Consciência Coletiva ou Consciência Perversa e liquidam a história no nível mesmo da linguagem, bem como qualquer ilusão a respeito do gênero humano.
Não há mais conflito autor/personagem, pois a personalidade esquizofrênica é dada como condição de normalidade do cotidiano high tech estilhaçado onde o personagem é o autor que se “objetiva” no espaço no qual ambos só sobrevivem se estiverem “armados” (com facas, revólveres, metralhadoras, automóveis, cartões de crédito, celulares, computadores, cash), revestidos com o brilhante tecido dos elementos da cultura e da economia de mercado como “armaduras”, soterrados por resplandecentes couraças metálicas (inclusive as abstrações da teoria lacaniana). Armaduras que, usadas full time, transformam-se no seu verdadeiro corpo fantasmático/frio/insensível. Assim a grandeza do escritor se torna a negação diária da sua humanidade, a sua desumanidade triunfante, a consumação da perversidade que agora é a medida da genialidade.
PublicidadeA diferença entre as duas sociedades é que a de 1960 se conhecia pela “falsa consciência”, a consciência envergonhada de suas injustiças e contradições, enquanto a de 2000 se conhece pela “consciência perversa”, que não só ignora a desigualdade social, como quer mais é que o Outro se foda ou pior, tem plena consciência das injustiças, contradições e do ponto sem retorno em que se encontra e não se importa.
E continua querendo que o Outro se foda.
¹ Lançado numa coletânea em 1975 e logo em seguida recolhido pela censura federal, só foi liberado em 1989, numa edição da Companhia das Letras.
Deixe um comentário