O Brasil completou, neste final de semana, seis meses do início da imunização contra a covid-19. Com uma taxa aquém do ideal, apenas 20% da população recebeu as duas doses ou uma vacina de dose única, conforme dados do Ministério da Saúde. Se por um lado o país sofre com a falta de mais imunizantes para avançar nos números, por outro, a ausência de campanhas informativas acende o alerta para riscos maiores como a proliferação de grupos antivacinas no país. A observação é da microbiologista Natália Pasternak, referência em comunicação em ciência.
“O movimento antivacinas se aproveitava de uma campanha sobre vacinas mal feita pelo governo ou de falta de informação oficial para fomentar a desconfiança e a gente está abrindo esta porta no Brasil”, disse. Ela alertou ainda que este movimento não é algo espontâneo, mas orquestrado e com interesses econômicos bem definidos. Ela também critica o papel do governo enquanto fonte de informações falsas e imprecisas. “É uma desinformação que vem diretamente do governo federal. O não uso de máscaras, a falta de necessidade de medidas preventivas, que são fomentados pelo governo federal, gera desconfiança, gera desinformação e gera uma população dividida.”
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Nesta entrevista ao Congresso em Foco, Pasternak avalia os seis meses da campanha de vacinação no Brasil e os gargalos para o avanço da imunização. Ela também fala do sentimento de otimismo que tem levado as pessoas a relaxarem quanto aos cuidados com o coronavírus. “Não dá para decretar que o caminho acabou. A gente não termina uma pandemia por decreto. A gente termina quando os números caírem e os números não caíram”, advertiu. A microbiologista ainda comentou estudos sobre uma possível memória imune do vírus e a necessidade de uma mudança de comportamento social quando este momento da pandemia passar.
O Ministério da Saúde distribuiu o primeiro lote de vacinas no Brasil em 18 de janeiro. Era o propagado “dia D, na hora H” do então ministro Eduardo Pazuello, que se concretizava com ar de disputa política. Isso ocorreu menos de 24 horas depois de o governador de São Paulo, João Dória (PSDB), visto como adversário político do presidente Jair Bolsonaro, ter autorizado a aplicação da primeira dose do imunizante no estado.
Naquele momento o Brasil tinha mais de 210 mil mortos e a campanha do governo federal começou sem informações precisas sobre número de doses, grupos a serem vacinados ou onde e como as pessoas poderiam ter acesso aos imunizantes. Semanas antes, Bolsonaro repetia declarações contra o uso de vacinas. “Se você virar um jacaré é problema seu”, ironizou.
Como avalia a campanha de imunização no Brasil, considerando que, passados seis meses, a taxa de brasileiros imunizados com as duas doses não chega a 15% da população. Na sua opinião, o que faltou?
PublicidadeFaltou campanha. Quando você fala em campanha de vacinação a primeira coisa que me vem a cabeça são aquelas campanhas que a gente tinha antigamente, campanha publicitária mesmo, incentivando a vacinação, com vinhetas na TV e no rádio feitas pelo Ministério da Saúde, pelo PNI (Programa Nacional de Imunização), que chamava as pessoas com um apelo humano. Essas campanhas não aconteceram para a covid-19. Então a gente tem no Brasil uma vacinação lenta e feita praticamente sem campanha publicitária. É claro que estados e municípios fizeram, mas a gente não viu uma campanha organizada, centralizada. A própria ex-coordenadora do PNI que esteve na CPI, a Francieli Fantinato, falou isso, que não teve verba para campanha publicitaria. Então faltou um incentivo esclarecendo as pessoas da importância da vacinação, da segurança das vacinas. E olha que apesar disso a maioria da população brasileira é favorável a vacinação. Todas as pesquisas de opinião mostram que as pessoas querem se vacinar, mas sem informação adequada as pessoas não sabem onde elas têm que ir, se é para voltar ou não para a segunda dose, quando, se pode escolher a vacina. Falta esclarecimento e falta campanha.
A gente vive uma pandemia, mas também uma infodemia, uma disseminação de notícias falsas em relação ao vírus e às formas de combate e precaução. Qual o impacto dessa infodemia sobre a covid-19 e quais os caminhos para vencê-la?
Como eu falei a gente tem muita sorte de a população brasileira, até pela tradição que temos do PNI e do SUS com programas de vacinação muito fortes, encarrar as vacinas de forma favorável. Mas isso pode mudar se a gente não tomar os devidos cuidados. Todos os países que desenvolveram um forte sentimento antivacinas começaram assim, com confusão de informação. O movimento antivacinas se aproveitava de uma campanha sobre vacinas mal feita pelo governo ou de falta de informação oficial para fomentar a desconfiança e a gente está abrindo esta porta no Brasil. A gente optou por não ter uma coordenação forte nacional centrada, explicando que vacinas são seguras, importantes e como você deve se vacinar. Então podemos estar abrindo uma porta muito perigosa para que o movimento antivacinas veja no Brasil – lembrando que o movimento antivacinas é um movimento organizado e financiado no resto do mundo por grupos de interesse – um nicho interessante. É o meu medo enquanto comunicadora de ciência, que a gente esteja abrindo portas para um problema que não existe ainda no Brasil. Agora a infodemia em relação a outros aspectos da pandemia que não a vacina é muito forte. Sobre uma não necessidade de lockdown e uso de máscaras, os remédios milagrosos, tudo isso é resultado dessa desinformação orquestrada que a gente tem e que é uma desinformação que vem diretamente do governo federal. O não uso de máscaras, a falta de necessidade de medidas preventivas, que são fomentados pelo governo federal, gera desconfiança, gera desinformação e gera uma população dividida.
Quem lucra com este movimento antivacina?
Geralmente quem lucra, e temos estudos sobre isso, são empresas que promovem produtos naturais de bem-estar, produtos emocionalmente ligados a uma aversão a tudo o que eles acham que é químico, que é uma intervenção médica, que não é da natureza. Eles vendem produtos naturais e estilos de vida tentando convencer as pessoas de que remédios são perigosos, de que vacinas são perigosas e de que a gente deveria viver a vida da maneira mais natural e sem nenhuma interferência química, como se isso fosse possível. Os grupos de interesse que vendem esses produtos e esse estilo de vida acoplado fomentam um sentimento antivacinas de que ‘ah, não precisa de vacina vacinas, é só usar estes produtos naturais que o seu sistema imune vai funcionar melhor’.
A faixa etária da vacinação tem diminuído, mas isso não se reflete nos números de imunizados, que estão aquém do ideal. Como observa essa dificuldade?
O maior gargalo no Brasil é a quantidade de doses e não a dificuldade de vacinar. A gente tem uma boa capacidade pelo PNI, mas temos doses limitadas. No primeiro momento se fez uma priorização de grupos, que cientificamente compreende-se, com comorbidades e condições crônicas específicas, acabou atrasando muito a vacinação por faixa etária porque você burocratiza a vacinação. Quando abre para fazer por idade é mais fácil e dá mais fluxo. Agora é que finalmente a gente abriu por idade e estamos vendo a vacinação caminhar. Mas o que a gente não previa, e isso é difícil de explicar no Brasil, é porque temos uma inadimplência de segunda dose tão grande. Inclusive entre idosos. Por isso fazem falta as campanhas publicitarias esclarecendo, cobrando, informando e uma busca ativa daqueles que não voltaram. Pode ser falta de informação de que precisava voltar naquela data, falta de organização porque a pessoa mora longe, ou falta de vacina no dia e depois ela não voltou mais. São coisas que precisam ser investigadas para entender por que tem uma parcela tão pequena de vacinados com duas doses apesar de estarmos avançando na idade.
Qual o risco de termos uma “semi-imunização”?
Se a pessoa acha que está protegida com uma dose só e ela não está, e principalmente com a entrada da variante delta – até porque vários estudos mostram que a vacina protege contra a Delta, mas só depois da segunda dose – a gente pode ter uma população que muda de comportamento e começa a se expor mais. E mesmo quando esta pessoa estiver completamente protegida – com as duas doses – ela não deve cair na ilusão de achar que está de corpo fechado, porque não é assim que funciona. As vacinas não são mágicas. Elas diminuem a probabilidade de você ficar doente, mas se você vai circular num ambiente onde tem a doença circulando você pode se contaminar
A gente tem vivido um momento de otimismo. Mesmo com a vacinação aquém do ideal no Brasil, as pessoas ou conhecem alguém vacinado ou a própria pessoa foi vacinada. Teve prefeito de capital dizendo, recentemente, que seria feito carnaval no ano que vem. Como a senhora vê esse otimismo e qual seria forma correta de se lidar com ele?
Eu gostaria muito de ver este otimismo transformado em campanha. De dizerem: ‘olha, está funcionando, a gente está se cuidando, está vacinando e os números estão caindo. Então o que a gente tem que fazer? Continuar no caminho certo, vacinar mais e fazer mais medidas de restrição’. Assim, vamos dar cabo deste vírus e fazer ele parar de circular. Mas infelizmente o imaginário popular vai pelo lado contrário. Não passou ainda. É um caminho e nós estamos no caminho certo. Então não é momento de desistir, é momento da gente ampliar nossos esforços.
A máscara, então, é uma coisa que permanece?
Permanece. A taxa de transmissão no Brasil ainda está alta. A média móvel de casos e óbitos ainda está alta. Não é momento de relaxar medidas, mas de intensificar medidas e cobrar vacinação, cobrar campanha. Não dá para decretar que o caminho acabou. A gente não termina uma pandemia por decreto. A gente termina quando os números caírem e os números não caíram.
Temos todos esses gargalos para garantir a vacinação da população hoje, mas e no ano que vem? Como vislumbrar uma próxima fase em que sejam necessárias doses de reforço garantir que a gente não fique suscetível ao vírus?
Primeiro vamos cuidar deste ano. A gente não sabe se vai ser necessário um reforço no ano que vem. A maior parte dos estudos de formação de células de memória, de memória longa para covid mostra que, provavelmente, é uma doença que vai fornecer memoria imunológica longa. Não sabemos se para a vida inteira, mas é pouco provável que a gente precise de reforços anuais como precisamos com a vacina da gripe. E se precisar, provavelmente não vai ser por causa de memória imune, mas pela presença de variantes que escaparam do sistema imune de alguma maneira. A maneira da gente evitar o surgimento dessas variantes é vacinar e cumprir as medidas preventivas porque as variantes surgem por causa da grande circulação do vírus. Então se a gente conseguir conter a circulação do vírus a gente vai conter o surgimento de novas variantes.
Como acredita que, findo este momento, as pessoas vão passar a lidar com a informação cientifica? O que fica de saldo?
É difícil prever comportamento humano e como as pessoas reagem a essas crises mundiais como guerras e pandemias. Em geral existem mudanças de comportamento porque são situações muito graves, situações globais que deixam traumas e sequelas. Eu espero que a pandemia serva, ao menos, para conscientizar a população de que a gente precisa prestar atenção com o nosso relacionamento com o planeta se a gente não quiser esbarrar tão facilmente em novas pandemias no futuro, com novos organismos que podem ser potencialmente pandêmicos. Se a gente não fizer este esforço global de mudar nossa relação com o planeta, explorar o planeta de uma forma menos predatória, vamos esbarrar em novas emergências. Mas eu não arrisco dizer se vamos conseguir ou não, mas acho que precisa ser feito um esforço muito grande na minha área, que é a área de comunicação e ciência, para fazer esta conscientização ocorra. Eu vejo muita gente falando que precisa de investimentos em testes de diagnósticos mais rápidos, em desenvolvimento de antivirais. Tudo isso é verdade e é importante, mas a gente também precisa de uma mudança no racional popular. A não vai conseguir lidar com uma próxima pandemia apenas desenvolvendo novas tecnologias, a gente precisa de uma mudança de comportamento e a mudança de comportamento é mais difícil de conseguir do que a tecnologia.
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