A partir de amanhã, os partidos têm 20 dias para escolher seus candidatos às eleições municipais de outubro, que podem ser as últimas sem o financiamento público de campanha, uma das medidas da reforma política em estudo no Congresso.
A medida é polêmica mas tem apoio em quase todos os partidos, o oposto do que acontece em relação a um dos pré-requisitos da mudança: a constituição de listas de candidatos fechadas, definidas pelos partidos.
O financiamento público é visto por parlamentares e cientistas políticos como a saída para evitar o abuso do poder econômico nas eleições. Mas nem todo mundo é tão otimista. Para o secretário-geral da organização não governamental Transparência Brasil, Cláudio Weber Abramo, a medida fortalecerá o caixa-dois dos partidos políticos, assim como a burocracia partidária.
Pelo sistema discutido pelos deputados, o financiamento público substituiria o privado, adotado atualmente. Para isso, os partidos teriam de abrir mão das listas abertas e passar a trabalhar com uma lista preordenada de candidaturas. “Quem levar mais dinheiro para o partido vai estar mais alto na lista. Essas transações, de modo algum, desapareceriam com o financiamento público, como querem alguns otimistas”, prevê.
A proximidade das eleições municipais, o jogo quase sempre obscuro do financiamento das campanhas e a suscetibilidade do eleitor ao poder econômico e ao marketing eleitoral preocupam o secretário-geral da entidade. Para ele, o país não mudou suficientemente nos últimos quatro anos a ponto de evitar que a oferta de compra de votos, que atingiu 6 milhões de brasileiros em 2000, venha a se repetir.
Nesta entrevista exclusiva ao Congresso em Foco, Abramo critica as organizações não-governamentais, que não estariam cumprindo a função de esclarecer a sociedade sobre a atuação dos parlamentares, e a imprensa, que estaria atrelada a interesses políticos e econômicos. Essas duas esferas, na avaliação dele, estão faltando no papel de intermediários entre o cidadão comum e os seus representantes. Publicidade
O secretário-geral da Transparência Brasil também critica a submissão do Legislativo ao Executivo. “Esse pessoal que está no Congresso é legislador ou não? Se for para ficar esperando as ordens do Planalto, eles têm mais é de renunciar aos seus mandatos”, disse.
Congresso em Foco – As eleições municipais são mesmo mais suscetíveis à comercialização do voto?
Cláudio Weber Abramo – As eleições municipais têm a característica da proximidade do eleitor e do candidato, em comparação com as eleições gerais. Pesquisas sobre oferta e compra de votos que a Transparência Brasil fez depois das eleições de 2000 e 2002 refletem a influência do espaço. Pela projeção da pesquisa, em 2000, 6% do eleitorado brasileiro foi sujeito à oferta de compra de voto por dinheiro. Esse índice chega a 12% nas regiões Norte e Centro-Oeste. Nas eleições de 2002, essa porcentagem caiu pela metade. Quer dizer, as eleições municipais parecem mais vulneráveis à comercialização de votos, o que coloca uma responsabilidade muito maior sobre entidades que se dispõem a montar mecanismos de captação de denúncias, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
“Em 2000, 6% do eleitorado brasileiro foi sujeito à oferta de compra de voto por dinheiro. Esse índice chega a 12% nas regiões Norte e Centro-Oeste”
Houve alguma mudança significativa no país, entre 2000 e 2004, para que se possa ter uma expectativa diferente em relação a essas estimativas?
Não mudou absolutamente nada. Não houve nenhum fato político ou administrativo que alterasse esse estado de coisas. Por isso, não é de se esperar que esses índices mudem.
A legislação atual é suficiente para coibir esse tipo de abuso ou é mais um problema de cunho cultural?
Esse negócio de responsabilizar a cultura é muito fácil. Cultura é algo genérico. Que ações podem ser exercidas para se alterar uma cultura? Isso não faz sentido. Ninguém jamais resolveu problema algum atribuído ao fenômeno da cultura. O que ocorre são práticas políticas e debilidade da consciência política da população.
É um problema que não dá para resolver a curto ou médio prazo?
O brasileiro tem baixa consciência política e vê pouca relação entre as eleições e o desempenho pós-eleitoral de seu candidato. Isso se dá em função da pobreza, de uma população que não tem serviços mínimos, composta em grande parte por analfabetos funcionais e desempregados. Isso só se resolve em gerações, e não porque alguém decidiu propor uma lei. As leis são necessárias, mas não são suficientes.
“O brasileiro tem baixa consciência política e vê pouca relação entre as eleições e o desempenho pós-eleitoral de seu candidato”
Que outros mecanismos podem complementá-las?
A cobrança e a vigilância dos meios de comunicação são fundamentais. Os meios de comunicação, por sua vez, são dominados em grande parte pelas mesmas oligarquias que dominam a vida política, especialmente nos estados mais pobres. Essa imprensa não é independente e não cobrará adequadamente o comportamento dos candidatos.
“Essa imprensa (nos estados mais pobres) não é independente e não cobrará adequadamente o comportamento dos candidatos”
Pelo levantamento da Transparência Brasil, quem está mais suscetível a ofertas em troca de voto?
O público mais vulnerável é o mais jovem. Existe uma correlação fortíssima entre a idade do eleitor e a sua vulnerabilidade na compra de votos.Eu não saberia explicar, em termos rigorosos, por que isso acontece. Posso apenas dar um palpite de que isso pode estar ligado a uma deterioração das máquinas políticas reais ao longo do tempo. O eleitor mais jovem assiste a práticas que o eleitorado mais velho acompanhava com menos freqüência, ou menos consciência. É possível que no passado houvesse menos informação.
“O público mais jovem é mais vulnerável à compra de votos”
O escândalo Waldomiro precipitou uma discussão mais intensa no início do ano a respeito da reforma política. Com a proximidade das eleições e a reação de partidos aliados do governo, o assunto acabou ficando em segundo plano. A reforma (Proposta de Emenda Constitucional 74/03) poderia mudar essa relação do eleitor com o candidato?
O problema do financiamento eleitoral é uma questão séria em qualquer país, porque revela como o dinheiro influencia as eleições. No Brasil, o grande eleitor é o dinheiro. Os candidatos eleitos são aqueles que recebem mais dinheiro em situações eleitorais. Pelo modelo de financiamento público, previsto na reforma política, o Estado daria dinheiro para os partidos, de acordo com a regra de proporcionalidade na votação anterior. Alguns dizem que isso moralizaria mais o processo eleitoral porque evitaria aquela relação entre o candidato e o seu doador durante o mandato, que se expressa na devolução de um favor.
“No Brasil, o grande eleitor é o dinheiro”
O senhor compartilha dessa opinião?
Tudo isso parece verdadeiro, mas não é verdade que o financiamento público reduzirá o caixa-dois de campanha. O financiamento público fortalecerá o caixa-dois para os partidos, o que não chega a ser um problema novo no país. O partido receberia o dinheiro ilegal e não declararia. Na PEC relatada pelo deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO), o fortalecimento das burocracias partidárias é uma conseqüência imediata, porque, para haver financiamento público, tem de haver lista fechada. Quem levar mais dinheiro para o partido vai estar mais alto na lista. Essas transações, de modo algum, como querem alguns otimistas, desapareceriam com o financiamento público. Sempre que alguém aparece com uma solução que parece milagrosa, devemos desconfiar.
A discussão está ocorrendo com a devida atenção?
A reforma que se propõe tem vantagens e desvantagens. Nós, da Transparência Brasil, entendemos que não está havendo oportunidade para que diferentes pontos de vista a respeito da questão sejam confrontados e submetidos à apreciação do povo. Corre-se o risco de aprovar algo que não é de jeito algum razoável. Não estão promovendo a discussão com o rigor que seria necessário.
Mas por que a reforma não avança? Falta vontade política por parte do parlamento?
Vontade política a gente discute quando quer. Que negócio é esse de vontade política? Precisa o chefe mandar fazer? É preciso que o imperador da vontade política, o senhor Lula, queira? Esse pessoal que está no Congresso é legislador ou não? Se for para ficar esperando as ordens do Planalto, eles têm mais é de renunciar aos seus mandatos.
“Esse pessoal que está no Congresso é legislador ou não? Se for para ficar esperando as ordens do Planalto, eles têm mais é de renunciar aos seus mandatos”
Mas não é isso o que está acontecendo de modo geral no país, ou seja, a prevalência dos interesses do Executivo?
Isso está acontecendo pela renúncia ao exercício do mandato, por conta de compromissos completamente casuísticos, não apenas no plano federal. Nas assembléias legislativas e nas câmaras municipais, os legislativos são cooptados pelo Executivo, dobram-se e não têm espinha mais.
O eleitor brasileiro de modo geral está tendo essa percepção e prestando menos atenção no momento de escolher seus representantes no Legislativo?
O eleitor brasileiro tem uma imagem muito má do processo político. Toda pesquisa que se faça sobre qualquer assunto mostra que o Congresso Nacional e os políticos têm péssima avaliação. Os partidos políticos e os parlamentos brasileiros disputam com a polícia o pé de qualquer avaliação negativa. Objetivamente, o que se verifica no Brasil é que o país tem a maior taxa de renovação nos parlamentos em todo o mundo. Metade dos parlamentares eleitos numa disputa não se reelege na seguinte, o que mostra que o eleitor não tem nenhum compromisso com esses caras.
“Metade dos parlamentares eleitos numa disputa não se reelege na seguinte, o que mostra que o eleitor não tem nenhum compromisso com esses caras”
Isso revela o quê?
Revela a falta de confiança no sistema, o que não é necessariamente expresso em palavras, por causa disso ou aquilo. O eleitor não vota naquele sujeito mais porque a saúde do sistema eleitoral e político brasileiro é baixa.
Em meio a essa debilidade do sistema, de que mecanismos o cidadão dispõe para escolher o seu candidato?
O eleitor brasileiro fica sem pai nem mãe nessas horas, porquecaberia às organizações da sociedade, as organizações não-governamentais (ONGs), informar os cidadãos mais próximos de suas áreas de influência a respeito do comportamento dos seus candidatos. Isso é um dever que essas instituições, em sua maioria, não cumprem. Não há como o eleitor se informar diretamente. Ele só pode se informar através de intermediários – por excelência, a imprensa e as organizações da sociedade civil.
Na prática, como isso poderia ocorrer?
Essas instituições têm recursos, por exemplo, para pegar os processos criminais a que os candidatos de determinada circunscrição eleitoral respondem. Não se pode esperar que o povo vá procurar isso nas ruas. Isso é ridículo. Os intermediários é que precisam agir. Mas por que motivo as organizações da sociedade civil seriam muito melhores do que o resto da sociedade brasileira? Não estamos em outro país, mesmo porque muitas vezes são as mesmas pessoas. Sem essa de achar que as organizações da sociedade civil são o máximo.
Mas muitas dessas entidades acompanham de perto a tramitação de matérias legislativas…
Sim, mas essa é uma visão um pouco estreita, é uma atitude que decorre do seguinte: é muito mais fácil examinar um projeto de lei. Qualquer um faz isso. Basta saber ler e ser minimamente informado. Não precisa de advogado, apenas reconhecer alguns interesses feridos. Outra coisa é recolher informação. Isso exige muita dedicação e cabeça, que não são mercadorias muito disseminadas atualmente.
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