O presidente Lula levou exatos 68 dias desde que a Folha de S. Paulo publicou a bombástica entrevista com o então presidente nacional do PTB, deputado Roberto Jefferson (RJ), para se pronunciar sobre o lamaçal em que afundaram seu governo e o Congresso Nacional. O discurso feito na Granja do Torto na última sexta-feira, como é notório, foi frustrante.
Sempre dois passos atrás daquilo que dele se exige, Lula permaneceu a adiar o inadiável, estreitando sua margem de manobra, a ponto de tornar cada vez menos improváveis cenários como o impeachment ou mesmo a renúncia do presidente da República.
Das lideranças políticas de maior peso no cenário nacional, raríssimas são as que torcem para Lula não concluir o mandato. Seu eventual afastamento, com a conseqüente substituição pelo vice José Alencar (PL) ou pelo presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (PP), é visto como a mais traumática – e, por isso, menos recomendável – das soluções para a atual crise institucional.
Mas, como se queixava após o discurso de sexta um líder oposicionista, “Lula não ajuda e se enrola mais e mais”.
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Abaixo, o discurso que ele poderia fazer neste momento tão grave, de modo a contribuir, de forma minimamente digna, para a superação da atual crise institucional. Forçosamente, com o pronunciamento, o presidente passaria ao largo de questões espinhosas como as negociações entre a Telemar e a empresa de um de seus filhos, o empréstimo que teria recebido do PT ou irregularidades apontadas por ex-aliados no financiamento de sua campanha eleitoral e na cooptação da base de apoio no Congresso. Mas, certamente, nos faria sentir menos tolos diante do festival de escândalos em cartaz.
Eis o discurso que Lula não fez:
PublicidadeBrasileiras e brasileiros,
São de domínio público as denúncias que envolvem ex-dirigentes do meu partido, políticos da base aliada e da oposição, ex-ministros e outros altos funcionários já afastados do governo. Também são conhecidas as tentativas feitas por certos desafetos, alguns dos quais defendiam bravamente o governo até ontem, de associar essas acusações a mim e ao meu companheiro, o vice-presidente da República, José Alencar.
Eu me penitencio por ter, ao longo das últimas semanas, subestimado a importância e gravidade das denúncias, ora em investigação no Congresso Nacional, na Procuradoria Geral da República, na Polícia Federal, no Tribunal de Contas da União, na Receita Federal, no Banco Central e em outros órgãos dos Poderes Legislativo e Executivo.
Peço perdão, ainda, por ter demorado a dirigir às senhoras e aos senhores as palavras que agora dirijo, certo de que é imperioso fazê-lo para que o país supere a grave crise institucional em que se encontra.
Nas eleições de 2002, na maior votação já dada neste país a um líder político, 53 milhões de eleitores me confiaram o desafio de conduzir os destinos da nação até 31 de dezembro de 2006. Empossado, tenho procurado dar o melhor de mim para ser o presidente de todos os brasileiros. Creio que fomos, minha equipe e eu, parcialmente bem-sucedidos nessa missão.
Alguns prenunciaram o caos econômico, talvez por acreditarem que a ascensão de um operário ao mais importante cargo da República só poderia representar a concretização do apocalipse.
Mas a verdade é que criamos 3 milhões de empregos; ampliamos, por meio do Bolsa Família, a assistência aos mais pobres; mantivemos sob controle a inflação, que subia com força ao término do governo do meu antecessor; geramos superávits comerciais inéditos na história do Brasil; e construímos um ambiente de tranqüilidade econômica capaz até mesmo de resistir aos escândalos que macularam a minha administração, o meu partido e agora ameaçam turvar minha própria biografia.
Falhamos, no entanto, ao não corresponder às expectativas da nação no que se refere ao respeito a valores éticos que devem guiar a vida partidária e a administração pública no Estado democrático de direito.
Assumo a responsabilidade que me cabe por aceitar a aliança com dirigentes partidários sem condições morais de corresponder à esperança que nos garantiu a vitória nas urnas. Repudio as práticas ilegais, lamentavelmente enraizadas em nossos costumes políticos, de compra de apoio político ou partidário. Defendo a responsabilização exemplar de todos aqueles que a aceitaram como instrumento para chegar e manter-se no poder. Mesmo que isso signifique a punição de amigos queridos.
Também foi um terrível equívoco a demora com que reagi aos acontecimentos que se sucederam desde a revelação, em maio, de esquemas de corrupção na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT. Falhei ao não acionar imediatamente as autoridades competentes, para que tudo apurassem, criando as condições para a punição dos responsáveis pelos atos irregulares praticados.
Reconheço, igualmente, que hesitei em afastar alguns auxiliares próximos, envolvidos nos fatos em investigação, até por sentimento de lealdade em relação a companheiros com que estive junto, nos últimos 25 anos, na construção do PT e na busca das mudanças que esta nação reclama.
Finalmente, errei ao fazer referências, em pronunciamentos públicos, a uma possível candidatura minha à reeleição. Da mesma maneira que me reservo o direito de considerar tal possibilidade, no momento apropriado e em conjunto com o meu partido, entendo que tratar do tema agora em nada contribui para equacionar o impasse institucional que o Brasil enfrenta.
Espero que as investigações sejam sérias, minuciosas e profundas, não poupando nem aliados nem aqueles que, militando na oposição, também são acusados de práticas irregulares, associadas seja ao financiamento de campanhas eleitorais, seja a métodos ilegais de cooptação política, seja a ilicitudes ligadas à gestão pública, a obediência à ordem tributária ou à movimentação de recursos financeiros.
Determino aos integrantes do governo federal que colaborem, ativamente, com o fornecimento de informações, a realização de levantamentos e outras providências que permitam facilitar as apurações em curso.
Ao mesmo tempo, anuncio que convidei os presidentes do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal para uma reunião, a se realizar ainda hoje, na qual pretendo discutir, em conjunto com os ministros da Justiça, da Casa Civil e da Fazenda, os passos necessários para a plena normalização institucional do país.
Encarreguei o secretário de Articulação Política de procurar os líderes dos principais partidos, tanto da situação como da oposição, com o objetivo de abrir negociações para a apresentação, em até 20 dias, de uma proposta consensual de reforma política, destinada a enfrentar o problema do financiamento irregular de candidatos a cargos eletivos e a encontrar formas de assegurar maior lisura, legitimidade e eficiência ao sistema político-partidário nacional.
Por fim, apelo aos meus adversários para que demonstrem o senso de responsabilidade que o momento exige. Promover manifestações públicas em favor da minha renúncia, como fazem setores minoritários à esquerda ou à direita, nada mais é do que puro golpismo. Os democratas, de todos os matizes, devem reagir com repulsa a essas tentativas de trair a vontade popular e rasgar a Constituição Federal.
Também merecem repúdio fatos como a inusitada aprovação pelo Senado de um salário mínimo bastante superior ao que, sabidamente, o país pode pagar – decisão que revela, no mínimo, oportunismo e descompromisso com a nação.
Odiosas, do mesmo modo, são as acusações já assacadas contra pessoas inocentes – como deputados do PT cuja imagem foi levianamente jogada na lama porque seus detratores lhe imputaram o crime de receber recursos espúrios apenas porque confundiram o nome de assessores seus com o de homônimos.
Quero, por fim, tranqüilizar os investidores, nacionais ou estrangeiros, e deixar uma palavra de confiança para todos os brasileiros.
Como ocorreu em outros episódios delicados da vida nacional, não tenho dúvidas de que seremos capazes de ultrapassar as dificuldades, sabendo extrair dos problemas de hoje as lições necessárias para o aprimoramento das instituições e a retomada de nosso caminho em direção ao desenvolvimento econômico, à busca de justiça social e à consolidação democrática.
Muito obrigado.
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva”
Não bastaria ao presidente Lula fazer uma manifestação do gênero acima esboçado. Ele precisaria, sobretudo, acreditar na necessidade de iniciar o movimento que tantos esperam. Dessa forma, não se tornaria invulnerável em relação à crise que ameaça apeá-lo do poder ou, talvez pior, a transformá-lo em uma autoridade sem força e sem moral. Mas forneceria a senha para a deflagração das negociações que podem trazer alguma luz ao tenebroso turbilhão em que a nação se vê mergulhada desde que veio à tona a denúncia do mensalão.
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