Por Étore Medeiros, Ciro Barros, Iuri Barcelos
Está nas mãos do presidente Michel Temer vetar ou sancionar o PLV 12/2017, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR), aprovado no Senado no fim de maio. Se sancionado, o projeto, no qual foi convertida a Medida Provisória (MP) 759/2016 (proposta às vésperas do Natal pelo Executivo), pode beneficiar os donos de 2.376 imóveis rurais que incidem integral ou parcialmente em terras públicas não destinadas na Amazônia Legal. Esses imóveis ocupam 6,3 milhões de hectares, mais de 4,8 milhões deles em intersecção com terras da União encampadas no programa Terra Legal. O objetivo do programa, criado em 2009, é cumprir a disposição constitucional de destinar terras pertencentes à União na Amazônia.
A área total passível de regularização fundiária seria de ao menos 4,3 milhões de hectares – uma área semelhante à do estado do Rio de Janeiro. Para chegar a este número, a Pública excluiu do total de intersecções os imóveis duplicados.
Muitas áreas públicas na Amazônia Legal estão em disputa por populações indígenas, ribeirinhos, quilombolas e trabalhadores rurais sem-terra. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2016 foram registradas 57 ocupações de terras nos estados que compõem a Amazônia Legal. Nelas, há quase 4 mil famílias acampadas.
O PLV de Jucá altera o artigo 6º da Lei 11.952/2009, que rege o Terra Legal. Pela redação anterior, apenas imóveis de até 1.500 hectares poderiam ser regularizados pelo programa, mas agora esse limite poderá ser ampliado para 2.500 hectares. A Pública cruzou os dados georreferenciados declarados no Cadastro Ambiental Rural (CAR) com a base de glebas públicas federais, que consta no Acervo Fundiário do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), e compilou os imóveis que seriam beneficiados com essa alteração.
Os resultados são indicativos, uma vez que os dados do CAR não têm caráter fundiário e são autodeclaratórios, ou seja, são os próprios fazendeiros que dizem quais as terras que ocupam – os dados são posteriormente analisados pelo governo. Apenas os cadastros classificados como ativos ou pendentes de análise na base do CAR foram considerados, descontando-se os cancelados. Também não foram consideradas áreas públicas declaradas no CAR, como projetos de assentamento, por exemplo. O cruzamento de dados georrefenciados de bases diferentes também pode trazer pequenas diferenças no cálculo das áreas estudadas.
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A ampliação do limite de hectares veio após a apresentação de uma emenda do deputado Nilson Leitão (PMDB-MT), presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA). “São terras ocupadas, produtivas. Muitos que compraram essas terras não têm o direito a ter o título delas. São brasileiros iguais aos que moram no centro do Rio de Janeiro e que não podiam ter o seu documento. Não tem nada de ilegal nisso. Ao contrário, não legalizar essas terras é que se torna uma criminalização de cidadãos brasileiros que têm investimentos, que produzem, que pagam impostos”, justificou Leitão em entrevista à Pública.
“A não titularização disso traz conflito agrário, traz invasão, que é tudo o que uma esquerda do Brasil quer fomentar, no MST, guerrilhas e tudo o mais. Precisa titular. Se a pessoa tem direito – e só vai titular quem tem direito –, é uma questão de justiça. Quem não tem direito não vai ser titularizado. A pessoa é dona da terra, construiu tudo lá, abriu estradas, construiu cidades, desenvolveu, deu progresso àquilo tudo lá e não tem o direito ao título?”, afirmou.
Questionado pela reportagem sobre as críticas de que a MP beneficiaria grileiros e desmatadores, o vice-líder do Democratas na Câmara, Pauderney Avelino (DEM-AM), contemporizou. “Risco sempre há. Há que se ter também fiscalização, para o cumprimento das regras. Se o governo estiver atento para cumprir as regras ali existentes, tenho certeza que essa ameaça não se consumará”, disse Avelino, revisor da Comissão Especial que analisou a MP 759 na Câmara.
O deputado Telmário Motta (PTB-RR), que é do mesmo estado de Jucá e participou da aprovação da matéria na mesma comissão, justificou seu voto “pelo bem de Roraima, que há mais de 30 anos espera a titulação de 25 mil famílias e 70 assentamentos”. Ele disse também que a MP pode beneficiar os pequenos agricultores. “Hoje, na nossa região amazônica, esta é uma das maiores pendências dos órgãos públicos: dar aos cidadãos do campo essa legalidade, essa segurança jurídica, para que eles possam realmente fazer uso desse patrimônio. Na minha terra mesmo, em Roraima, são mais de 60 assentamentos, mais de 25 mil famílias esperando esse momento de ter essa documentação em mãos”, relatou Motta.
Já a oposição vê a aprovação da MP como parte de um pacote de medidas para agradar o agronegócio. Também da região amazônica, o senador Paulo Rocha (PT-PA) diz: “A 759 não está isolada, ela faz parte de um processo do atual governo de querer mexer na legislação sobre a questão agrária para facilitar o acúmulo de terras nas mãos de poucos e abrir para vender terra para estrangeiros. A MP é apenas a ponta do iceberg.É um conjunto de medidas do governo para poder desestruturar a estrutura agrária”, diz.
O deputado oposicionista Edmilson Rodrigues (PSOL-PA) faz coro ao parlamentar petista: “O primeiro ato do pacote foi extinguir o Ministério do Desenvolvimento Agrário. O segundo e terceiro, [promulgar] as MPs 756 e 758, que fazem parte da mesma estratégia. E, depois, a MP 759. E agora vem o projeto de venda de terra para estrangeiros”, elencou.
Além do conteúdo do texto, Rodrigues criticou também a forma de tramitação da MP no Congresso. “A sociedade não existe para este governo autoritário. E nem mesmo o Congresso existe, porque ele baixa uma MP, coloca um pau-mandado de presidente, nesse caso o Izalci [Lucas, deputado do PSDB-DF] e um outro pau- mandado de relator, que nem é tão mandado assim, porque grande parte dos interesses são para lhe beneficiar, o senador da Amazônia, o Jucá”, critica o deputado. Também o Ministério Público Federal (MPF) criticou a tramitação da matéria por meio de medida provisória.
MP é inconstitucional, diz Ministério Público
A MP 759 foi aprovada no plenário da Câmara no último dia 28 de junho, na forma do projeto de lei de conversão (PLV 12/2017), relatado por Jucá. Ao texto original, que entrou em vigor em dezembro do ano passado, foram acrescidas 123 emendas de um total de 732 apresentadas no Senado e na Câmara. O texto altera um total de 28 leis, decretos-leis e medidas provisórias – as alterações vão da Lei de Reforma Agrária à Lei de Registros Públicos, passando pela legislação que rege o programa Minha Casa Minha Vida, a alienação de imóveis da União e pontos específicos da lei do FGTS. As principais áreas sobre as quais o texto se debruça são a regularização fundiária urbana e rural.
Em abril, o Grupo de Trabalho (GT) de Terras Públicas da 1ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal lançou uma nota técnica na qual ataca vários pontos da lei. Uma das críticas é à tramitação. O texto da MP enviado pelo presidente Michel Temer ao Congresso pediu urgência na tramitação com base em três acórdãos do TCU que paralisaram parcialmente o Programa Nacional de Reforma Agrária no ano passado e bloquearam mais de 500 mil cadastros de beneficiários. Após o requerimento, o texto passou em regime de urgência no Congresso – ou seja, teve a tramitação abreviada.
“O TCU determinou que houvesse as devidas correções no processo de seleção de beneficiários da reforma agrária. A urgência se justificaria se essa medida provisória versasse única e exclusivamente sobre isso, mas não foi o caso: a MP versa sobre vários outros aspectos que não têm relação com o acórdão do TCU”, argumenta o coordenador do GT de Terras Públicas do MPF, Marco Antônio Delfino. Na nota técnica, o MPF defende que a matéria deveria ter seguido “o devido processo de lei ordinária”.
Para além do rito legislativo, o procurador Delfino classifica a medida como inconstitucional. Um dos exemplos citados por ele é a revogação dos artigos 14 e 15 na Lei Complementar nº 76, de 1993, que regulamenta a desapropriação de imóveis para a reforma agrária, e a alteração no artigo 5º da Lei 8.629, de 1993, que disciplina o próprio capítulo constitucional da reforma agrária. As mudanças trazem a possibilidade de pagamento em dinheiro no caso de compra e venda de imóveis destinados à reforma agrária, o que, para o MPF, afronta a Constituição.
“Há uma leitura do governo federal, que é só dele, de que a compra e venda não é uma modalidade de desapropriação, mas ela é e está prevista na Lei 8.629. A Constituição estabelece que a desapropriação tem que ser paga em títulos da dívida agrária. Além disso, uma lei complementar não pode ser alterada por medida provisória”, argumenta Delfino. Outro órgão do MPF, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), também criticou a MP em nota técnica lançada em abril. “A referida medida provisória padece de vícios de inconstitucionalidade formal e material”, resume a nota, assinada pela subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat.
Apesar dos questionamentos formais, os órgãos de terras do governo apoiaram a aprovação da medida duramente questionada por movimentos sociais ligados à questão agrária, que a rebatizaram de “MP da grilagem”.
Terra Legal: “Não regularizamos áreas de interesse público”
O coordenador-geral de regularização fundiária do programa Terra Legal, José Dumont, defende o texto da MP e diz que ela é resultado dos debates travados há anos no Grupo Executivo Interministerial (GEI) que acompanha o programa. Segundo ele, já se identificava no GEI a necessidade de ajustes na legislação pertinente. “Essas alterações que foram promovidas garantem a efetividade da política de regularização fundiária. Esse foi o princípio norteador nas alterações propostas na medida provisória e em algumas emendas propostas. As alterações fortalecem o programa de regularização fundiária e a política para contenção de desmatamento na Amazônia”, afirma Dumont.
Sobre a ampliação de hectares prevista na lei, Dumont afirma que não foi uma alteração proposta pelo governo, mas pelo Congresso, e ressaltou o princípio da destinação de terras públicas presente na legislação brasileira. Disse que a destinação das terras ouvirá órgãos socioambientais interessados em áreas em disputa na Amazônia Legal – como já ocorre no programa Terra Legal.
“A gente tem um fórum instituído desde 2013, que é a Câmara Técnica de Destinação de Terras Públicas. A gente conta nesse fórum com a Funai, o Incra, o ICMBio, o Serviço Florestal Brasileiro, o Ministério do Meio Ambiente, o Ministério Público Federal e o Censipam. É nesse ambiente que é discutida a destinação de terras públicas”, pondera Dumont. “Ali são colocadas em consulta todas as glebas que a União arrecadou na Amazônia para que os órgãos manifestem se há interesse público ou social na destinação da terra. Independentemente do tamanho do imóvel, se houver manifestação de interesse de algum desses órgãos que compõem a Câmara Técnica, ou seja, interesse público e social, nós não fazemos a regularização”, diz.
Desde a sua criação, o Terra Legal já emitiu mais de 29 mil títulos e regularizou cerca de 13,5 milhões de hectares, segundo dados da Secretaria Especial de Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário (Sead). O órgão informou também que há 907 processos de regularização na faixa máxima permitida atualmente (até 1.500 hectares) e que apenas um imóvel já foi titulado. Nas audiências públicas do Senado que debateram a MP, Dumont afirmou que mais de 90% dos títulos expedidos pelo Terral Legal foram para pequenos e médios agricultores.
O presidente do Incra, Leonardo Góes Silva, faz coro ao colega da Sead. “A MP traz um marco legal e torna mais objetivos os critérios para a emissão de títulos nas áreas de assentamentos. A titulação é uma demanda dos assentados, assim como a regularização dos lotes ocupados por pessoas com perfil de reforma agrária”, argumenta.
Duas das principais entidades ligadas à questão agrária no Brasil – a CPT e o MST – fazem críticas severas às mudanças trazidas pela lei, sobretudo pelas mudanças da MP em relação à reforma agrária. As críticas se voltam para outro aspecto trazido pela MP: a possibilidade de pagamento pelos assentados para a obtenção do título de domínio dos lotes de reforma agrária e a possibilidade de negociação desses títulos após o prazo de dez anos.
“Atualmente, as áreas de reforma agrária têm títulos em nome das famílias assentadas que só passam ao domínio delas após um período de 20 anos. Só aí as áreas podem ser vendidas. Essa medida vai rebaixar esse prazo e facilitar os critérios de titulação, prevendo até o pagamento dos assentados pelos lotes. Vai se intensificar o processo de reconcentração de terras no Brasil, o que já vem acontecendo há algum tempo, de acordo com os dados disponíveis. Haverá a abertura das áreas de assentamento ao mercado de terras, o que pode levar à reconcentração”, diz Ruben Siqueira, membro da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
“Nós não somos contra a titulação”, defende Alexandre Conceição, liderança nacional do MST. “Nós queremos o cumprimento da Constituição. Ela determina que, a partir de dez anos da criação do assentamento, os assentados recebam todos os créditos de instalação, a infraestrutura básica do assentamento e, a partir disso, a emancipação dos lotes. Só que eles querem liberar a titulação em áreas que nem são assentamentos ainda, nem habitação tem, nem energia elétrica. Eles querem aquecer o mercado de terras. Nós defendemos os títulos de CDRU [Concessão de Direito Real de Uso], que estão previstos na Constituição e preveem a titulação em nome das famílias beneficiárias com direito a hereditariedade”, diz Conceição.
A Pública pediu uma entrevista para a assessoria de imprensa da Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA), mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem.
O PLV 12/2017 foi enviado pela Câmara à sanção presidencial também no último dia 28 – véspera do recebimento pelo órgão legislativo da denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o presidente Michel Temer por corrupção passiva. A data final para a sanção do projeto, segundo a Secretaria de Governo, é o próximo dia 18 de julho.
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