A ideia em um segundo O Brasil retrocede nos indicadores de liberdade de expressão e liberdade de imprensa. Ameaças a jornalistas tornam-se mais comum e mais virulentas. Trata-se de perigoso indicador de derrocada da democracia. |
Na semana do Dia Nacional da Liberdade de Imprensa (7 de junho) só há protestos. Efemérides como essa costumam marcar comemorações ou pontos de galvanização de resistências mnemônicas. No caso brasileiro, prevalece a segunda posição.
Esta edição do Farol reflete sobre dois acontecimentos absurdos dos dias que passaram. O desaparecimento de um jornalista do The Guardian, Dom Phillips, juntamente com o indigenista Bruno Pereira; e as ameaças a jornalistas do Congresso em Foco , Lucas Neiva e Vanessa Lippelt, e derrubada do site por hackers em função de denúncias referentes à produção remunerada de fake news pró-Bolsonaro.
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Tomadas em conjunto, as duas notícias trazem uma perspectiva sombria: o que em uma é ameaça, na outra pode ser a consumação da ameaça.
A derrocada dos indicadores
Os últimos quatro anos trouxeram o declínio do País em vários campos. Dentro do assunto que estamos tratando, destacamos o “índice de liberdades civis”, o “índice de liberdade de expressão” e o “índice de assédio de jornalistas”, conforme levantados pelo Varieties of Democracy – V-DEM, organização internacional e independente. A figura a seguir traz esses três índices, até 2021.
Como se pode perceber, a Constituição de 1988 levou o Brasil a um novo patamar de experiência democrática, inclusive em termos desses três indicadores. Contudo, os últimos anos foram marcados pelo seu declínio acentuado, colocando o País em um nível inferior ao último período democrático que atravessou – 1946-1964.
Particularmente, o índice de assédio a jornalistas é o que apresenta pior desempenho, no pós-1988, antes mesmo da degradação do último quadriênio. Muitas especulações podem ser feitas sobre esse ponto – mas o fato é que características socioculturais, tal como apontadas pelos clássicos – coronelismo, patrimonialismo, elitismo extrativista – coadunam-se muito bem com o fato. Coronéis não gostam de serem questionados. Elites extrativistas preferem operar à sombra. Práticas patrimonialistas, com sua injustiça inerente, não aparecem bem nas manchetes.
Pelo ranking do Repórteres sem Fronteiras de Liberdade de Imprensa o Brasil caiu seis posições nos últimos quatro anos, tendo entrado na zona vermelha, classificada pela Instituição como difícil.
A Diretora da Unesco, Marlova Noleto, em entrevista ao Valor Econômico, em 7 de junho, ressaltou: “há sombrias evidências de que a atual oferta de jornalismo – que já era insuficiente para anteder às necessidades em muitas sociedades – já não pode ser considerada como garantida. Os últimos cinco anos testemunharam um aumento de outras ações que ameaçam os esforços globais para salvaguardar a liberdade de expressão e a universidade da internet, para além do uso de ações judiciais intimidadoras. Serviços de notícias foram bloqueados na rede, jornalistas foram espionados ilegalmente e sites de comunicação social foram atacados”.
Os canários da democracia
A conexão entre democracia e jornalismo deveria ser tomada como óbvia. Contudo, diante do quadro, há que se pensar que falta ainda reflexão sobre o assunto. Democracia pressupõe processos de tomada de decisão públicos, feitos a partir da possibilidade de debate e confronto de ideias diferentes, em um contexto aberto e pluralista.
É certo que isso pode acontecer nas redes sociais (uma hipótese otimista), mas é o jornalismo, a partir de suas perspectivas deontológicas, suas exigências profissionais, que realiza a tarefa de apresentar à sociedade o que está em questão, quais são as implicações, as perspectivas, permitindo ao público informação para formar sua própria opinião.
Após a decisão tomada, é o jornalismo que acompanha o assunto, trazendo-o à baila quando pertinente, mostrando consequências e derivações, propostas e realidade. Nutrindo-se nesse manancial de informação, é possível haver oposição – aqueles que se posicionam contra uma decisão e mantém a defesa de caminhos alternativos. Enfim, essência da democracia.
Por isso, quando jornalistas são ameaçados, ou mortos, ou punidos indevidamente, pode-se dizer que estão morrendo os canários da democracia: tal como no caso dos trabalhadores das minas de carvão, as pessoas em geral ficam sabendo que a democracia está morrendo quando os jornalistas-canários vão se silenciando. Como cantou Chico Buarque: afasta de mim esse cálice!
O espelho perverso – tática totalitária
Orwell, em 1984, apresentou explicitamente uma das mais usuais táticas totalitárias: a inversão da verdade. O Ministério da Verdade, em sua obra 1984, era justamente aquele responsável por não permitir que a verdade viesse à tona jamais. De tão explícito, o exemplo imaginado por Orwell foi por muito tempo considerado caricato. Mas a realidade faz com que os exemplos passem a ser novamente lembrados e considerados como possibilidades, ante o desenrolar dos acontecimentos.
Sob o manto da liberdade de expressão, caluniadores, criadores e propagadores de fake news se escondem, reivindicando moralidade para suas ações vis, a partir dos conceitos democráticos, e no caso brasileiro, constitucionais, que envolvem o princípio. A discussão é antiga e as soluções, embora dependam de apreciações contingenciais (análise aprofundada de cada caso), apontam para um necessário equilíbrio entre interesses individuais e interesses sociais.
Por si só, a disseminação de fake news é perversa, pelo grau de intoxicação que introduz na esfera pública. Remunerada e organizada, a prática aproxima-se do crime organizado. Esse foi o objeto da denúncia feita pelos jornalistas do Congresso em Foco. Que Lucas Neiva e Vanessa Lippelt, entre tantos outros jornalistas, sigam cantando o que veem e sobrevivendo aos ares pútridos que sopram envenenando as minas.
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