Paulo Dalla Nora Macedo*
Entre os dias 22 e 24 de abril Portugal e Brasil voltam a realizar uma Cúpula entre os dois Países, numa retomada ansiada depois de seis anos de hiato. E, no dia 24 de abril, no Palácio de Queluz, Chico Buarque receberá o Prêmio Camões pelas mãos do novo presidente do Brasil e do presidente da República portuguesa, uma entrega adiada durante toda a presidência de Bolsonaro. A entrega será feita conjuntamente por dois presidentes que, não partilhando o mesmo espectro ideológico, partilham o campo democrático.
O simbolismo de negar-se a entregar, a um dos grandes artistas do Brasil, o maior prêmio da literatura portuguesa, instituído em 1988 – ano da simbólica Constituição cidadã no Brasil – é um bom resumo da relação do governo Bolsonaro com a cultura e da sua visão de mundo. E o governo Bolsonaro é um inequívoco exemplo da extrema-direita mundial, celebrado publicamente em Portugal pelos seus representantes locais. Atenção, é preciso repetir: trata-se da extrema-direita, não da direita.
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Ao revisitar o passado para aprender com ele, “regressamos” a 1973, ano em que Chico Buarque lançou a música “Fado Tropical”. Nela fazia uma crítica social ao momento em que se encontrava o Brasil, que tinha entrado então na fase mais aguda da sua ditadura. Portugal já estava então há décadas sob o regime de Salazar. Éramos duas nações irmãs vivendo sob regimes de exceção e era o mesmo Chico Buarque usando o brilhantismo da sua arte como ponte de afeto entre os dois países:
“Ai, esta terra ainda vai cumprir o seu ideal
Ainda vai tornar-se o imenso Portugal
Ai, esta terra ainda vai cumprir o seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ai, esta terra ainda vai cumprir o seu ideal
Ainda vai tornar-se o Império Colonial”
Quis o destino que um ano depois de a música de Chico ser lançada, Portugal saiu da ditadura com a Revolução dos Cravos e o que era uma crítica tornou-se um sopro de esperança pelos que defendiam a democracia: o Brasil precisava sair da sua ditadura e virar um “imenso Portugal”. E assim Portugal serviu de inspiração e exemplo para o Brasil, mas o caminho foi longo e penoso: só tivemos eleições livres para presidente em 1989, com a promulgação da Constituição cidadã.
De volta ao presente… Hoje é o Brasil que se encontra numa posição de servir como exemplo, infelizmente negativo, mas nem por isso menos relevante, dos riscos que um governo do arco da extrema-direita representa para as instituições nacionais e, especialmente, para o lugar de Portugal no mundo. A auspiciosa possibilidade de Portugal renascer como um hub cultural global, estimulando setores ligados à criatividade, definitivamente não dialoga com a visão nativista desse arco.
Da mesma forma que um Portugal salazarista jamais teria esse espaço no mundo: “Portugal é um País conservador, paternalista e – Deus seja louvado – atrasado, termo que eu considero mais lisonjeiro que pejorativo”, escreveu o ditador português ao diretor da Coca-Cola na Europa para explicar porque tornou a bebida proibida em Portugal. Nem Coca-Cola, nem Playboy.
Lembro que a primeira vez que vim a Portugal, em 1990, ainda dava para sentir os efeitos desses ventos por aqui: a “distância” de Lisboa para Paris era muito mais intensa: Lisboa parecia viver num “tempo” anterior. O Websummit não chegaria nesta Lisboa.
No Brasil, como cofundador do Instituto Política Viva, tive a oportunidade de acompanhar bem de perto todo o processo de sedimentação do bolsonarismo como força eleitoral: meses antes das eleições brasileiras de 2018, fiz parte de um grupo que conversou no Brasil, com o professor de Harvard Steven Levitsky, coautor do bestseller Como as democracias morrem.
A iniciativa foi uma tentativa de alertar formadores de opinião do mundo empresarial e da imprensa dos perigos que estávamos a correr, tendo a eleição de Trump como guia. O professor participou de seminários e reuniões e em todas as ocasiões fez o alerta: não menosprezem o potencial eleitoral de Bolsonaro, especialmente com o poder das redes sociais, nem o seu extremismo. Em relação a este último ponto, ressaltava que o ex-presidente brasileiro ostentava o maior índice de autoritarismo entre todos os líderes mundiais que tinha estudado a fundo.
As reações da plateia estavam muito divididas. Uma parte considerável avaliou como exageradas as previsões, tanto as hipóteses de vitória como o alerta sobre o viés iliberal do candidato. Havia uma crença no ar de que Bolsonaro nunca seria eleito e que, se por um acaso fosse, seria “domado” nos seus impulsos extremistas; e, poderia ser até, na visão dos menos politizados, um veículo de implantação de um programa econômico liberal. A realidade mostrou que não se doma extremistas, como os cientistas políticos amplamente mostram pelo estudo da História. Só tolos acreditam nesta hipótese.
Nas eleições seguintes no Brasil, em 2022, penso que todos os personagens que o professor encontrou em meados de 2018 declararam apoio público a Lula, muitos pela primeira vez, num claro reconhecimento dos riscos que agora entendiam: o extremismo, que o Bolsonarismo embandeira, é ruim para a economia, a médio e a longo prazo.
Claro que existem setores econômicos, especialmente os extrativos, e bolsões do mercado financeiro que se beneficiaram do projeto bolsonarista, mas não é a regra geral do mainstream, como as posições dos mais representativos empresários, gestores financeiros e economistas brasileiros na eleição de 2022 comprovam.
Infelizmente, tivemos que experimentar os efeitos de um governo extremista para que essa compreensão decantasse. Mais grave ainda é que os efeitos de um governo dessa natureza não se resumem aos seus quatro anos de mandato, nem às suas medidas concretas.
Tão nefasto quanto isso é a herança de ódio à cultura, ódio à ciência, ódio aos avanços civilizacionais em comparação à glorificação da boçalidade e da ignorância, cinicamente vendida como autenticidade. Tudo embalado por um discurso de apelo moral e ético, usando sempre a luta contra corrupção como bandeira. É o “reacionarismo populista”, como definiu o cientista político brasileiro Christian Lynch, ao estudar profundamente os anos de Bolsonaro para escrever um livro.
Torço para que a Cúpula e a entrega do prêmio a Chico Buarque sirvam de momentos de reflexão para Portugal pensar no que precisa fazer para evitar percorrer o mesmo caminho do Brasil. Não é preciso que o nosso país irmão passe pelo mesmo sofrimento.
*Paulo Dalla Nora Macedo é economista, cofundador do Instituto Política Viva no Brasil e co-host do podcast “Gente de lá e de cá na mesa do Cicero em Portugal”
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