Luiz Henrique Antunes Alochio*
A história política brasileira tem trazido constantemente à tona um sem número de escândalos administrativos e financeiros. O estudo raso desses eventos pode fazer com que tais problemas estejam localizados em um único partido político ou com que sejam exclusividade de um setor específico da vida pública — como a santificar os próprios setores de acusação, imunizando-os de seus próprios casos de condutas no mínimo censuráveis. Muitas vezes parece haver a tentativa de santificar um passado idílico, na vã tendência de acreditar que, em “outros tempos”, não havia atos de corrupção.
Os comitês de salvação nacional são implantados. Os tribunais de inquisição são potencializados pela via — que se esperava mais plural e democrática — das ditas redes sociais. Mesmo os órgãos públicos dotados do poder de fiscalização, apuração e punição lançam-se numa sanha policialesca e punitivista, como se tudo lhes fosse permitido. Como se os fins justificassem os meios. Numa democracia, não!
Essa introdução pode fazer crer que esteja aqui a defender um afrouxamento das funções de fiscalização. Longe disso. Este autor é dos que defendem sanção severa. O que se apregoa, desde já, é a verificação de um direito ao devido processo legal, antes mesmo de deflagrado qualquer processo judicial formal, especialmente nos processos de cunho acusatório e inquisitorial, nesses tempos de destruição gratuita de reputações.
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O tema deste artigo, ainda que não pareça, tem tudo a ver com o acima referido.
A aposentadoria compulsória de ministros do STF.
Neste mês de janeiro, recordamos — mais precisamente, pranteamos — um evento histórico, assim descrito nas palavras do ministro Gilmar Ferreira Mendes:
PublicidadeNo dia 16 de janeiro de 1969, […], ocorreu uma das maiores agressões ao Judiciário brasileiro: a aposentadoria compulsória dos Ministros Victor Nunes Leal – então Vice-Presidente –, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Em solidariedade aos cassados, renunciaram em seguida o então Presidente – Ministro Gonçalves de Oliveira, que tomara posse há pouco mais de um mês – e o decano da Corte, Ministro Lafayette de Andrade.
Note-se que no próprio Regime Duro pós-1964, editado o AI-2, ainda em outubro de 1965, aumentou-se o número de ministros de 11 para 16. Os cinco ministros adicionais foram Adalício Nogueira, Prado Kelly, Oswaldo Trigueiro, Aliomar Baleeiro e Carlos Medeiros. Novamente, recorda o Ministro Gilmar Mendes, “os novos ministros desfizeram-se, como devido, de qualquer matiz partidário. Investidos da função de julgar, cumpriram-na com fiel atenção aos princípios de Direito”. Um Judiciário independente tem seus ônus, atrai inimigos.
Não obtida a submissão do STF pela via das nomeações adicionais, o Regime de Força aposentou compulsoriamente em 16 de janeiro de 1969 os três ministros acima mencionados: Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Falaremos adiante da figura ímpar de Victor Nunes Leal.
Victor Nunes Leal e sua atualidade
Em dezembro de 2023, celebramos os 63 anos de nomeação de Victor Nunes Leal ao cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal. E, em 16 de janeiro de 2024, pranteamos os 55 anos de cassação (uma aposentadoria compulsória) dele do cargo de ministro pelo Regime de Exceção. Apesar de terem sido 3 ministros cassados, usarei o exemplo do maior Ministro de todos os tempos: Victor Nunes Leal ou, para os fãs incondicionais, VNL.
VNL era ímpar! Profundo conhecedor do Direito, também transitava por pesquisas nas áreas de ciências sociais. Dele é a autoria de Coronelismo, Enxada e Voto, o clássico que desnudou as relações de poder, desde o poder central aos “coronéis” ou líderes políticos locais (e vice-versa).
Dele foi a ideia de Súmulas para o Supremo Tribunal Federal. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy se refere a isso:
Metódico, Nunes Leal reunia e resumia em cadernos (que já vi expostos na biblioteca do STF) pontos convergentes entre temas discutidos e as várias decisões proferidas. Sintetizava uma linha de pensamento, que reduzia em fórmula rápida e direta.
Emendou-se o Regimento do STF, concebendo-se um “enunciado de súmula”, decidido pelo Plenário, proposto por uma então criada Comissão de Jurisprudência, ou por qualquer dos ministros, nesse caso, com parecer da Comissão. Nesse tema, há interessante estudo de Marcus Gil Barbosa Dias, que foi assessor de Sepúlveda Pertence e que mapeou a luta de Nunes Leal contra o desconhecimento que o STF tinha em relação às próprias decisões.
Não por outra razão, conforme o mesmo autor, o então Ministro Aliomar Baleeiro teria se referido a VNL como sendo “a própria jurisprudência viva do Supremo Tribunal Federal andando pelas ruas”.
Hoje, um dos sistemas de inteligência artificial do STF, o que realiza a triagem de temas de repercussão geral, tem o nome VICTOR!
Enquanto estava no STF, parecendo antever o poder destruidor das redes sociais e da comunicação em massa, ele já denunciava o caráter deletério do tempo durante processo. Por isso preconizava em seus votos:
1. Que o direito de defesa começa antes mesmo do processo judiciário. Começa no direito de não ser processado frivolamente, em processos fadados ao arquivamento ou à improcedência, aqui atraindo a valorização de noções hoje tão abandonadas, como os conceitos de indícios e justa causa.
2. Que as autoridades responsáveis pela acusação poderiam ter suas atribuições avaliadas em potencial comportamento de abuso do poder de denunciar. Não para punir a autoridade ou órgão denunciante, mas para evitar denúncias frívolas. Aquelas que depois de anos a fio destruindo uma reputação acabam improcedentes ou arquivadas.
É preciso recuperar a seriedade da noção de Indícios. É ainda mais imperioso que se resgate a dignidade da noção de Justa Causa. Indícios e Justa Causa, conceitos essenciais tanto para as ciências criminais quanto para o Direito Administrativo Disciplinar ou Sancionador.
Ao dizer isso, não se pretende qualquer redução das sanções para os crimes contra o patrimônio público. Apenas devemos exigir que sejam respeitadas as regras do jogo democrático.
Em 2014, enquanto presidente da Associação dos Procuradores de Vitória (APROVI), ajudei a criar a Comenda Victor Nunes Leal, para homenagearmos pessoas que tenham se dedicado ao bem comum. No verso da medalha, cunhamos a frase que demonstra a humildade de VNL: “Outros, mais capacitados, que empreendam a tarefa de indicar o remédio.”
*Doutor em Direito da Cidade (Uerj) e mestre em Direito Tributário (Ucam).