Júlio Marcelo de Oliveira *
A Emenda Constitucional 105/2019, que instituiu as chamadas transferências especiais tem suscitado importante discussão sobre a natureza jurídica dos recursos por ela transferidos e sua titularidade, do que decorre a definição de competências de fiscalização e controle de vários órgãos. Se houver desvio desses recursos, quem julgará as contas do gestor faltoso, o Tribunal de Contas da União ou o respectivo tribunal de contas local? Quem investigará eventual crime correlato, a Polícia Federal ou a Polícia Civil? Quem processará eventual autor de crime envolvendo esses recursos, o Ministério Público Federal ou estadual? Será competente a Justiça Federal ou a Justiça estadual?
De um lado, há os que defendem que se trata de recursos que integram desde a transferência o rol de receitas dos estados e municípios, atraindo o regime jurídico relativo ao pacto federativo, de modo que estados e municípios não precisam prestar contas à União do bom uso desses recursos e apenas órgãos estaduais e municipais têm competência para fiscalização. Os defensores dessa tese se apoiam na redação do inciso II do § 2º do artigo 166-A da CF, que diz que pertencerão aos estados e municípios os recursos no ato da efetiva transferência financeira, o que seria corroborado pela desnecessidade de celebração de quaisquer termos de convênio ou instrumento congênere.
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De outro lado, há os que defendem que os recursos preservam sua natureza federal, dado constituírem transferência voluntária, incompatível com a natureza dos recursos do pacto federativo. Para essa corrente, a interpretação do dispositivo constitucional há de ser feita de forma histórica e lógico-sistemática e não apenas literal.
O próprio Congresso Nacional que editou a emenda solicitou que o Tribunal de Contas da União se manifestasse sobre a natureza desses recursos. A consulta ainda não foi apreciada pela Corte de Contas.
Para o deslinde dessa questão, há que se verificar os caracteres jurídicos fundamentais que estruturam o pacto federativo e aqueles que conformam as transferências voluntárias, de modo a identificar se há nas transferências especiais elementos que as distingam das transferências voluntárias a ponto de permitir a atração do regime jurídico próprio dos recursos que integram o pacto federativo.
De modo bem simples e direto, o pacto federativo é a repartição de receitas e competências materiais entre União, estados e municípios, isto é, a definição do que compete a cada ente realizar em termos de estruturação do Estado e prestação de serviços públicos e a previsão dos recursos destinados de forma permanente para fazer face a esses deveres.
No que toca às receitas, além dos impostos que cabe a cada ente instituir e cobrar para si mesmo, há também uma seção da Constituição dedicada à repartição de receitas. Essa divisão está delineada nos artigos 157 a 162 da Constituição Federal. Nos artigos 157 e 158, a Constituição declara pertencerem aos estados e municípios as receitas ali indicadas. Já no artigo 159, a Constituição usa o verbo entregará para determinar que parte dos impostos ali referidos seja repassada a estados e municípios. Essas expressões, também adotadas para as transferências especiais, são usadas como argumento para justificar a tese de que se trata de recursos estaduais e municipais desde o momento da entrega, afastando assim qualquer competência fiscalizatória da União.
Para além da literalidade das expressões utilizadas pela Constituição, há que se examinar as características ontológicas da repartição de receitas do pacto federativo, marcada pela impessoalidade, a objetividade, o equilíbrio e a justiça. Não há margem para discricionariedade ou preferências subjetivas dos governantes. Dentro do pacto federativo, não há como a União dar tratamento privilegiado a alguns entes em detrimento de outros.
Já no universo das transferências voluntárias, especialmente as definidas por meio de emendas parlamentares impositivas, que é o caso das transferências especiais, a característica mais marcante é a absoluta discricionariedade do parlamentar, logo da União, na definição de quem irá ser beneficiário da dotação que lhe cabe destinar.
Antes de mais nada, a própria constitucionalidade da transferência especial é objeto de questionamentos, uma vez que tem características de uma doação com encargos. Aliás, quando proposta essa emenda constitucional, as transferências especiais eram chamadas de doações. A mudança de nome talvez tenha sido um eufemismo para evitar uma percepção mais clara de sua inconstitucionalidade. Pois bem, pode a União escolher alguns entes subnacionais para doação de recursos federais? Isso não feriria o artigo 19 da Constituição que proíbe aos entes federados o estabelecimento de quaisquer preferências entre si? Porque escolher o município A e não o município B para transferir recursos de aplicação quase totalmente livre?
No acumulado dos orçamentos da União dos últimos três anos, incluído o corrente ano de 2022, 60% dos municípios foram contemplados com algum valor, ao passo que 40% deles não receberam nenhum centavo. Tal sorte de discriminação totalmente arbitrária, sem nenhuma justificação com qualquer política pública da União – como ocorre com os convênios celebrados setorialmente pelos ministérios –, sem nenhum critério objetivamente predefinido, é incompatível com o regime jurídico da repartição de receitas do pacto federativo e afigura-se incompatível com a própria Constituição.
Note-se que o volume de recursos transferidos por meio dessas emendas tem crescido ano a ano. Neste exercício de 2022, o montante de recursos das transferências especiais já ultrapassa a cifra de 3 bilhões de reais. Daí a importância também crescente de se saber a quem compete fiscalizar a aplicação desses recursos.
Historicamente, os recursos vinculados às transferências voluntárias sempre mantiveram a natureza federal, estando de algum modo vinculados ao atingimento de alguma finalidade pública pactuada com a União ou predefinida em lei.
Na tramitação da PEC que deu origem às transferências especiais, chegou a existir dispositivo com a finalidade explícita de atribuir aos órgãos locais a fiscalização dos recursos atinentes a essa modalidade de transferência. Tal dispositivo, contudo, foi excluído, a indicar que o constituinte derivado não quis prescindir da atuação dos órgãos da União na fiscalização e controle desses recursos.
Embora as transferências especiais prescindam de qualquer pacto prévio com a União, sua aplicação pelos estados e municípios não é absolutamente livre como ocorre com os recursos do pacto federativo, mas observam restrições impostas pela Constituição, como a proibição de serem utilizados para pagamentos de dívidas ou gastos com pessoal ativo ou inativo e a obrigação de serem aplicados somente dentro do Poder Executivo e terem 70% de seu montante destinados a despesas de capital.
Essas condições precisam ser fiscalizadas e, em caso, de descumprimento, as consequências adequadas terão de ser aplicadas pelo órgão competente. Imagine-se que um prefeito utilize recursos oriundos de transferências especiais para pagamento de dívidas ou pagamento de pessoal, objetos de gasto proibidos pela Constituição. A quem caberá julgar suas contas? Quem poderá determinar que o município restitua à União os recursos indevidamente aplicados? Essa determinação será possível se os recursos não forem considerados federais?
Dadas suas principais características jurídicas, a natureza jurídica dos recursos relativos às transferências especiais é de recursos federais, devendo a expressão pertencerão, constante do inciso II do § 2º do artigo 166-A da CF, ser entendida, de forma coerente com o sistema orçamentário e tributário nacional, como mera antecipação precária de uma transferência de titularidade, que se perfaz apenas com a observância dos encargos ou condicionantes de aplicação correta dos recursos. Ao passo que nos convênios e ajustes congêneres essa transferência de titularidade se dá com a aprovação das contas após a implementação do objeto conveniado (bem ou serviço pactuado), na transferência especial, a transferência somente se completa com a obediência às regras de gasto estabelecidas no próprio artigo 166-A da Constituição, obediência esta passível de fiscalização pelos órgãos de controle federal.
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* Júlio Marcelo de Oliveira é procurador de Contas junto ao TCU e diretor do Ministério Público Democrático (MPD).
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