Andrey Schlee*
No dia 27 de julho 2021, depois de um longo período que envolveu a preparação do dossiê, a avaliação internacional e a revitalização do próprio monumento, finalmente, o Sítio Roberto Burle Marx foi inscrito na seleta lista do Patrimônio Mundial. E o foi respondendo a dois critérios fundamentais.
Por um lado, por “representar uma obra-prima do gênio criativo humano”; e, por outro, por “ser um exemplo de um tipo de conjunto arquitetônico ou de paisagem, que ilustra significativos estágios da história humana”. Destacando que tal feito – que tanto deve orgulhar o Brasil – só foi possível em função do trabalho técnico de excelência e da dedicação exemplar dos servidores públicos federais, exclusivamente dedicados (ou devotados) à preservação do Sítio.
Refiro-me, é claro, aos trabalhadores do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan. A autarquia federal que, mesmo desprestigiada e sucateada pelo atual (des)governo federal, ainda é capaz de colher os frutos de ações, projetos, programas e políticas patrimoniais iniciadas em administrações anteriores. Assim, para comemorar o reconhecimento internacional do monumento, reproduzimos parte do artigo originalmente publicado no livro Sítio Roberto Burle Marx[1], e que trata de sua proteção nacional.
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A biografia de Roberto Burle Marx é conhecida, mas ainda está por ser escrita… Dele, sabe-se que era paulista, e que os pais foram figuras ímpares. Wilhelm Marx, um comerciante judeu-alemão, nascido em Stuttgart, cuja árvore genealógica o ligava ao famoso Karl Marx. Cecília Burle, jovem pernambucana, amante da música, nascida em Apipucos, bairro de antigos engenhos de açúcar. Do Marrocos, Wilhelm desembarcou no porto do Recife em 1895. Buscava consolidar o negócio de compra e venda de couros. Acabou casando-se com Cecília. O início da vida conjugal foi no Estado de São Paulo, onde Wilhelm fundou um curtume.
PublicidadeNos primeiros anos do século XX, Cubatão era caracterizada pelo predomínio da natureza. Do verde dos manguezais e dos bananais. Foi ali, em função da facilidade de obtenção do tanino que, em 1912, Wilhelm instalou a Companhia Curtidora Marx, abrindo as portas para o processo de industrialização que passaria a caracterizar a região.
Na cidade de São Paulo, Wilhelm e Cecília viveram e uma bela e pitoresca residência na Avenida Paulista. A Villa Fortunata, que havia pertencido à família Thiollier – entre os quais René, intelectual diretamente ligado aos modernistas da Semana de 22. Nela nasceram cinco dos seis filhos do casal, incluindo Roberto, em 1909.
Em 1913, a família Burle Marx transferiu-se para Rio de Janeiro, num primeiro momento, compartilhando parte da residência de Angelina Lisboa, irmã mais velha de Cecília[2]. Quando Roberto completou dez anos, todos passaram a viver em um sítio no bairro do Leme:A chácara, situada em um terreno com 60 metros de frente, subia até o alto do morro da Babilônia. Lá tinha toda comodidade, com varanda, terraço, piscina, jardins, matas, nascentes, enfim uma qualidade de vida excelente[3].
A chácara foi, em todos os sentidos, fundamental para a formação de Roberto. Nela o jovem despertou para o paisagismo e para as artes. No Leme, recebeu todo o incentivo do pai que, além de apaixonado por livros e vinhos, chegou a construir um pequeno ateliê para o filho. No Leme, Roberto aprendeu a receber e a compartilhar, adquirindo o gosto pela natureza e pela música, sempre cultivadas pela mãe e demais familiares.
Era um terreno grande, com muita pedra, muita água e uma piscina. Dona Cecília, sua mãe, tomava conta do grande jardim. Ali também irá morar Ana Piaseck, sua “mãe de criação”. Juntas, tratam das crianças e ensinam Roberto a cuidar das plantas. Ele tem então o seu primeiro canteiro[4].
Quando em 1949, Roberto e o irmão Guilherme Guilherme Siegfried adquiriram o Sítio Santo Antônio da Bica, o paisagista já havia produzido algumas de suas principais obras, como as praças de Recife (1934-37), os jardins do Ministério da Educação e Saúde Pública (1938); a Praça Salgado Filho do Aeroporto Santos Dumont (1938); os jardins do Conjunto da Pampulha (1942); a Praça de Cataguazes (1942); os jardins dos três primeiros edifícios do Parque Guinle (1947) e os jardins das residências Burton Tremaine (1948) e Odette Monteiro (1948).
A aquisição do sítio e a transferência da coleção de plantas tropicais do Leme para a Barra de Guaratiba marcaram, no entanto, uma transformação na obra de Roberto Burle Marx. De um lado, temos uma mudança da escala das intervenções, com a criação dos grandes parques urbanos, como o do Ibirapuera (1953), da Pampulha Iate Clube (1961), do Parque do Flamengo (1961), do Centro Cívico de Santo André (1967), do calçadão de Copacabana (1970), da Praça dos Cristais em Brasília (1970) e do aterro da Baia-Sul de Florianópolis (1977). De outro, a possibilidade de desenvolvimento de jardins como recriação de ecossistemas complexos, como na residência Alberto Kronsfoth (1955), no Parque Zoobotânico de Brasília (1961, não executado) ou no Aquário do Parque do Flamengo (1969, também não executado). O Parque del Este, em Caracas (1956) é um incrível exemplo da união das duas situações.O Sítio, além de laboratório botânico e paisagístico em constante experimentação, deve ser igualmente encarado como o espaço de permanente construção de um “lar ideal”, capaz de absorver e responder positivamente, do ponto de vista simbólico, programático e funcional, todas as necessidades do ser humano Roberto Burle Marx. Além dos aspectos naturais que presidiram a escolha do local, a propriedade era composta de antiga residência e capela – a marca da tradição, como diria Lucio Costa. Tais elementos, a partir de 1949, passaram a ser respeitados, mas engenhosamente transformados ou recriados. A capela do século XVII foi restaurada[5]. A casa principal foi reerguida[6], e recebeu novos espaços para as diferentes coleções – sempre crescentes – ou para as múltiplas festas e muitos almoços ou jantares.
Para os frequentadores da varanda das carrancas, foi criado um requintado jardim – com ninfeias, água e mural com blocos de granito[7]. Para pintar, foi prepara uma loggia, toda revestida por azulejos[8]. Para os vinhos, uma adega[9]. Para os amigos, vários quartos de hóspedes – incluindo a construção de uma pequena casa de pedra[10]. Para os jades azuis, um extraordinário pergolado sobre engenhoso espelho d’água – tudo ao lado do salão de festas ou cozinha de pedra[11]. Para as vitórias régias, dois lagos represados[12]. Para a administração do complexo, um edifício simples[13]. E, para tudo o que Roberto Burle Marx amava, um surpreendente ateliê[14] com fachada principal composta a partir do granito proveniente de velha construção do Rio de Janeiro. O Sítio Santo Antônio da Bica não responde, portanto, a um projeto paisagístico ou arquitetônico, mas sim a um projeto de vida.O Sítio Santo Antônio da Bica é sua casa, é laboratório onde realiza cruzamentos de plantas e obtém variedades novas. Vive numa casa-grande avarandada, de onde vê a baixada de Guaratiba, vizinha à região destinada ao Novo-Rio, extensa área em cujo primeiro projeto de urbanização, de autoria de Lucio Costa, estavam mencionados os jardins de Burle Marx[15]. É possível que, ainda menino, tivesse se firmado, em sólidas bases afetivas, o seu projeto de vida[16].
Roberto Burle Marx é um caso singular. Em plena era espacial e atômica, a pessoa dele e o seu mundo, conquanto falem linguagem contemporânea, confinam com a Renascença. A sua via é permanente processo de pesquisa e criação.
A obra do botânico, do jardineiro, do paisagista se alimenta da obra do artista plástico, do desenhista, do pintor, e vice-versa, num contínuo vaivém. Começou – enquanto estudava pintura – cultivando e agenciando plantas com amor, em função da forma, da textura, do volume da cor, na encosta do morro do Lema no quintal da casa dos seus pais, à rua Araújo Gondim onde, numa atmosfera de extrema comunhão familiar, a música já imperava e, por sua mão, outra arte se impôs. E, pouco a pouco, esse pequeno quintal foi se alastrando, crescendo, até que alcançou o país, ultrapassando-lhe as fronteiras. A casa sumiu, os pais morreram. A idade avança. Possui belo sítio com magníficos viveiros; recebe e é festejado. Cria joias e estruturas decorativas vegetais; é desenhista e pintor, faz jardins; é botânico e arquiteto paisagista; defende as matas e ainda preserva a paixão e o entusiasmo de quando começou. Mas em qualquer tempo, vá onde for, haja o que houver – aquele recanto do Leme continuará intacto e vivo no seu coração[17].O Sítio Santo Antônio da Bica como Patrimônio Cultural Nacional
Em 20 de setembro de 1984, foi protocolado na Subsecretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atual Iphan, um abaixo-assinado em que nove cidadãos solicitaram ao Subsecretário, Irapoan Cavalcanti de Lyra, o tombamento do imóvel denominado Sítio Santo Antônio da Bica, de propriedade dos irmãos Roberto Burle Marx e Guilherme Siegfried Marx. A justificativa apresentada para o acautelamento do bem foi o “inegável valor cultural e científico da coleção de plantas tropicais ali existentes”[18]. Assinaram o documento a Presidente da Fundação Rodrigo Melo Franco de Andrade, Maria do Carmo Melo Franco Nabuco; a pesquisadora de botânica Graziela Maciel Barroso; o botânico Luiz Emygdio de Mello Filho; o arquiteto Alcides da Rocha Miranda, o professor Moacyr Barros Bastos, o advogado e editor Gastão de Holanda, o arquiteto e urbanista Lucio Costa, o economista e ecólogo Carlos Alberto Ribeiro de Xavier e a embaixatriz Luiza Zilda (Zazi) Aranha Corrêa da Costa.
Complementando o pedido de tombamento, também foram encaminhados documentos produzidos pelo Instituto Estadual de Patrimônio Cultural do Estado do Rio de Janeiro, Inepac, que havia provisoriamente tombado o Sítio em 1983. Segundo informações então produzidas pelo arquiteto Ítalo Campofiorito, o Inepac, buscando preservar a produção botânica e artística de Burle Marx, identificou “um fascinante e surpreendente conjunto de bens culturais”, assim explicitados:
(1) A coleção do Sítio é um grande viveiro e, portanto, o acervo básico da produção de Burle Marx; conservá-la é mais do que guardar o que está plantado – é proteger um extraordinário depósito científico e preservar incontáveis jardins do futuro; (2) ali está o resultado de uma generosa e linda obra de botânico e artista plástico, inseparável de uma longa luta pela paisagem brasileira e pela defesa de nossa identidade natural […]; (3) como se vê nos textos anexos, essa valorização é internacionalmente compartilhada; de todos os países chovem elogios a esse acervo…[19]
Como é possível perceber, embora frente a um “fascinante conjunto de bens culturais”, Ítalo Campofiorito defendeu o tombamento estadual do Sítio, exclusivamente, baseado no seu valor botânico, incluindo na área ou “terreno” onde essa “riqueza” estava “disseminada”, apenas “a Casa, a Capela e o Ripado”[20]. Na sequência, seis fotografias foram anexadas: duas ilustrando o ripado ou sombrais, uma do lago, uma da capela e duas da casa. Somente nas legendas há ligeiras referências aos aspectos culturais diretamente relacionados. Por exemplo: “no interior da residência existem valiosas coleções, destacando-se uma de cerâmica pré-colombiana (mais de 180 peças), outra de cerâmica do vale do Jequitinhonha, outra de cristais, além de numerosas peças de arte popular e quadros de Roberto Burle Marx e de outros autores”[21].
Em 7 de outubro de 1983, o Diretor-geral do Inepac, Leonel Kaz, encaminhou o processo ao Secretário Extraordinário de Ciência e Cultura, Darcy Ribeiro. Dez dias depois, o Sítio foi provisoriamente tombado e o Governador Leonel Brizola informado.Coube ao jornalista e roteirista Roberto Marinho de Azevedo Neto, na condição de membro do Conselho Estadual de Tombamento, em abril de 1984, encaminhar parecer favorável ao tombamento definitivo do bem. Em sua argumentação, afirmou que o Sítio possuía “importância histórica, artística e científica”[22] sem, no entanto, explicitar tais valores ou quais os atributos que sustentaram sua avaliação.
O processo de tombamento instruído pelo Inepac, conforme salientou Ítalo Campofiorito, reuniu um significativo conjunto de depoimentos sobre Burle Marx e seu acervo botânico. A leitura de tais documentos permite compreender o que, de fato, se desejava preservar. Para Graziela Maciel Barroso, do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, o Sítio se tornou “o depósito de coleções botânicas de inestimável valor científico”[23] e explica a excepcionalidade do bem:
Seu proprietário, dotado do mais alto espírito de pesquisador, transformou o local num autêntico jardim botânico, onde as espécimes de Anthurium, Philodendron, Caladium, Xanthosoma, Mostera e muitas outras Araceas, de Begonias, Orquidaceas de várias espécies, Bromeliaceas, Marantaceas, Heliconias, Palmeiras, Guttiferas e muitas outras representantes dos angiospermas, podem ser admiradas e estudadas pelos numerosos botânicos e amantes da natureza, que lá vão ter[24].
Hermes Moreira de Souza, do Instituto Agronômico de São Paulo, reforçou a importância da coleção botânica[25] e destacou as preocupações de Burle Marx:
Como paisagista, B. Marx possui um viveiro próprio onde as plantas são multiplicadas e as mudas formadas para composição de seus projetos. Desse viveiro saem as plantas para as exposições nacionais e internacionais já realizadas por ele. Conhecer a propriedade de B. Marx é penetrar num reduto de arte e num ambiente de respeito à natureza, bafejado de religiosidade pela capela antiga junto à sede, preservada para ofícios religiosos periódicos. A sede, revestida de granito liso, retrata a personalidade de B. Marx […][26]. É grande a preocupação de B. Marx para com o futuro da riqueza excepcional de plantas que reuniu. A grande área ocupada por elas, a responsabilidade pela sua manutenção e preservação […] Achar uma solução para o resguardo de todo esse patrimônio de valor incalculável […][27].
Entre os documentos reunidos pelos técnicos do Inepac, destaca-se a longa lista de plantas produzidas pela empresa Burle Marx & Cia. Ltda, que – longe de substituir um inventário da coleção botânica – comprova a grande diversidade existente no Sítio.Dando encaminhamento ao pedido de tombamento recebido pelo Iphan em setembro de 1984, os arquitetos Glauco Campello e Sabino Barroso[28] trataram de constituir um grupo técnico para analisar o tema, o que gerou pareceres específicos produzidos pelo arquiteto Antônio Pedro de Alcântara, pela museóloga Maria Emília de Souza Mattos e pelo arquiteto-paisagista Carlos Fernando de Moura Delphim. O primeiro, argumentou favoravelmente ao tombamento, acrescentando informações sobre o valor cultural do Sítio, particularmente sobre a residência e o ateliê:
O conjunto arquitetônico que abriga o mobiliário e as coleções de cerâmica, pintura, cristais, arte popular e a obra artística do pintor e paisagista Roberto Burle Marx, apesar de alterado na sua feição original, foi ampliado pelo proprietário e restaurado sob orientação técnica dos arquitetos Carlos Leão e Lucio Costa, circunstância que garantiu o toque de sensibilidade e a elevada qualidade artística dessas intervenções.
Acresce a construção do futuro atelier de Roberto Burle Marx, com a recomposição de uma preciosa fachada de cantaria do século XIX e as várias composições feitas pelo artista com cantarias remanescentes de demolição de prédios daquele século. Esses conjuntos que revelam a criatividade de Roberto Burle Marx estão definitivamente integrados ao acervo paisagístico do Sítio. Enriquecendo-o extraordinariamente[29].
Maria Emília também analisou o valor cultural do bem, chegando a destacar os elementos ou atributos de maior relevância que, por isso, deveriam ser incluídos no tombamento:
- Na casa – o escritório do artista; o conjunto de pinturas e desenhos de Burle Marx que decoram os diversos ambientes, notadamente as telas que documentam as várias fases de Burle Marx pintor; os estudos, croquis, desenhos e projetos executados pelo paisagista para inúmeros parques, jardins, áreas de recreação criados para edifícios públicos e particulares existentes no Brasil e no Exterior e que devem ser conservados e expostos nesta casa; parte do acervo de bens culturais móveis que decora esta residência e que testemunha o gosto pessoal e o cotidiano de Burle Marx.
- Na capela – a imagem de Santo Antônio, inclusive os resplendores de prata que adornam o Santo e o Menino[30].
Por sua vez, Carlos Delphim reforçou o valor da coleção botânica e a contribuição de Roberto Burle Marx para a preservação da natureza:
Durante mais de 30 anos Roberto Burle Marx vem aclimatando no sítio Santo Antônio da Bica uma coleção com as mais notáveis plantas tropicais do mundo, com exemplares da Amazônia, Porto Rico, Haiti, Equador, África, Índia etc. Através de suas excursões pelas regiões fitogeográficas do Brasil, recolheu numerosas plantas autóctones, criando uma das mais importantes coleções florísticas do mundo, procurada por estudiosos brasileiros e estrangeiros que nela encontram espécies ainda desconhecidas da flora brasileira, espécies raras ou em vias de extinção, quando não únicas, já que muitos dos locais onde se fizeram as coletas, desapareceram vítimas de depredação causada pelo homem […]. O sítio Santo Antônio da Bica representa o grande esforço de um único homem voltado para a conservação e preservação de elementos naturais num momento histórico em que a natureza se vê mais do que nunca ameaçada pela depredação humana e aspectos paisagísticos deverão ser protegidos através de toda a legislação referente à conservação da natureza e dos bens culturais e mais, deverão ser efetivadas ações concretas para salvaguardar, inventariar, mapear e reproduzir as espécies que constituem a coleção de Roberto Burle Marx[31].
Foi a arquiteta Dora Alcântara, na função de Coordenadora do Setor de Tombamento, quem analisou e consolidou a documentação disponível, produzida tanto pelo Inepac quanto pelo Iphan. Ao fazê-lo, construiu uma bela imagem, relacionando o trabalho de Burle Marx com a história da preservação no Brasil. “Reportam-nos aos ideais do pensamento nacional, especialmente defendidos a partir dos anos 20, de reconhecimento e valorização do patrimônio cultural acumulado pela jovem nação brasileira, possuidora, no entanto, de milhares de monumentos naturais, sítios e paisagens dotados pela natureza com feição notável. Essas reflexões levam-nos a estabelecer uma íntima ligação entre o espírito da obra de Roberto Burle Marx e os próprios ideais da Sphan”[32]. E foi defendendo o espírito da obra de Burle Marx que Dora Alcântara argumentou pelo tombamento “histórico, paisagístico e artístico do Sítio” em conformidade com a delimitação adotada pelo Inepac, “incluindo o conjunto de bens imóveis”. Argumentou, também, pela necessidade da realização de inventários dos acervos botânicos e artísticos, a serem incorporados à novos processos de tombamento. Por fim, deixou uma inquietação:
Queremos, no entanto, registrar nossa preocupação com a preservação deste conjunto excepcional de valores, que apenas inicia com o processo de tombamento e sua homologação. O tombamento a nosso ver, só fara sentido se complementado por outras medidas de preservação que, em sua continuidade, dependerão da montagem de uma estrutura adequada, que garanta a preservação dos valores naturais e culturais que integram o Sítio de Santo Antônio da Bica, enquanto patrimônio nacional[33].
Em 3 janeiro de 1985, o arquiteto Augusto da Silva Telles, Diretor do Tombamento e Conservação[34], encaminhou o processo para o Subsecretário Irapoan Cavalcanti de Lyra, para a notificação dos proprietários. Ainda em janeiro, os irmãos Roberto e Guilherme Marx anuíram com o tombamento provisório do bem.
No Conselho Consultivo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o parecer foi elaborado pelo crítico de artes visuais Alcídio Mafra de Souza, que propôs o tombamento definitivo nos seguintes termos:
Já tombado provisoriamente pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro, impõe-se, agora, para fins de preservação de toda aquela área, seu tombamento pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Pleito de reconhecimento a generosa e longa luta de um artista plástico e botânico pela defesa de nossa identidade cultural, de nossa paisagem e da reabilitação de nossa flora. Valorizado internacionalmente, proponho seja inscrito no respectivo livro de tombo o Sítio de Santo Antônio da Bica, cuja área inclui a Casa de Residência e seus anexos, a Capela, as obras de arte de cantaria e o ripado de plantas[35].
A reunião do Conselho Consultivo que aprovou por unanimidade o tombamento do Sítio ocorreu, na emblemática Fortaleza de Santa Cruz, na ilha de Anhatomirim, em Santa Catarina, no dia 22 de janeiro de 1985.
O Sítio Burle Marx como Patrimônio Cultural Nacional
Ainda enquanto aguardava a homologação da decisão do Conselho Consultivo, Augusto da Silva Telles determinou a conferência das dimensões e da descrição física do bem[36]. Ocorreu que, simultaneamente ao processo de tombamento do imóvel, se estabeleceu um outro, envolvendo a compra e venda e a doação do próprio Sítio para a Fundação Nacional Pró-Memória, FNPM. A transação foi registrada no 22º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, por meio da Escritura nº 41, de 11 de março de 1985[37]. Tal instrumento estabeleceu as seguintes condições para a transmissão da propriedade: o local passou a ser denominado de “Sítio Roberto Burle Marx” e incorporado à estrutura da FNPM; Roberto e o irmão mantiveram, enquanto vivos, a posse direta dos imóveis e benfeitorias do Sítio; a FNPM assumiu a responsabilidade de financiar e realizar as obras de conservação necessárias; ficou obrigada a utilizar o Sítio como “um centro de estudos e pesquisas relacionadas com paisagismo e conservação da natureza”; ficou obrigada a garantir os salários de “todas as pessoas necessária à sua boa manutenção”; e, por fim, ficou igualmente obrigada a “preservar a integridade física e institucional das diversas coleções existentes”, sejam elas de “plantas, de cerâmica, arte sacra, pinturas do outorgante, livros e o que mais encontrado for…”[38].
Para colaborar com a administração do Sítio Roberto Burle Marx, ainda segundo a Escritura nº 41, foi prevista a criação de um Conselho Consultivo, composto em seu primeiro mandato, além dos membros natos, dos seguintes amigos de Burle Marx – entre os quais, três signatários do pedido de tombamento do Sítio –: Graziela Maciel Barroso, Maria do Carmo de Melo Franco Nabuco, Luiz Emygdio de Mello Filho, Klara Annamaria Kaiser Mari, Jorge Machado Moreira, Luiz Antônio Ferraz Matthes, Nanuza Luiza de Menezes, Ary Garcia Roza e Rosalina Azevedo Leão.
Dos três volumes que compõem o processo de tombamento nº 1.131-T-1984, o terceiro é confuso. Os diferentes carimbos contendo a marcação das páginas demostram certa reordenação dos documentos e a adoção de uma nova numeração corrida. Na verdade, trata-se do procedimento de rerratificação da decisão tomada pelo Conselho consultivo em 1985. Por outro lado, deve-se levar em consideração o delicado contexto institucional. Naquele momento, a Fundação Pró-Memória e a Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional estavam passando por profundas transformações administrativas e organizacionais, que culminaram, em 1990, com a extinção de ambas e a criação do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural, o IBPC. No entanto, a vida do IBPC foi curta, dando origem, logo em 1994, no atual Iphan.
O primeiro documento, é de 1999, e incorpora ao processo administrativo o inventário do acervo museológico do Sítio. Ao todo, foram identificados 3125 bens. Na casa principal, foram listadas as peças e objetos que formam as coleções de arte popular, de cerâmicas do Vale do Jequitinhonha, de culturas pré-colombianas, de arte sacra, de cristais, de mobiliário e de pintura, entre outras. No ateliê, foram catalogados 1600 itens produzidos pelo artista. Acompanha o dossiê, um detalhado parecer produzido pelos técnicos Helena Mendes dos Santos e Marcus Tadeu Daniel Ribeiro, que buscaram precisar o objeto tombado (ou a ser acautelado). Desta vez, incluindo a descrição das principais edificações (prédio da administração, capela de Santo Antônio da Bica, loggia, casa ou residência principal, salão ou cozinha de pedra e pavilhão Roberto Burle Marx ou ateliê) e o acervo móvel do Sítio. O parecer conclui indicando a inscrição do “Sítio Burle Marx e seu acervo móvel e bibliográfico” nos livros do tombo de Belas Artes e Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico[39].
Na sequência, temos o protocolar parecer do Departamento de Proteção, Deprot, que recomendou a inscrição do bem nos mesmos livros do tombo. Logo, consta um quadro com a listagem da documentação analisada desde 1984, de maneira que é possível perceber, e compreender, a complexa articulação que levou ao reconhecimento do Sítio como Patrimônio Nacional. Revela também, os nomes de uma série de importantes personagens, amigos de Roberto e apaixonados por seu sítio.
Aceita a instrução de rerratificação – agora com a denominação de “Sítio Roberto Burle Marx e sua coleção museológica e bibliográfica” –, os valores originalmente atribuídos ao bem voltaram a ser analisados pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, em sua reunião de 10 de agosto de 2000, ocorrida no Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro.
Como uma simbólica homenagem, 17 anos depois do tombamento provisório do Inepac, coube ao conselheiro Ítalo Campofiorito relatar o processo:
[…] Diante desse mar de coisas, acompanho o historiador do Iphan Marcus Tadeu Daniel Ribeiro e a arquiteta Helena Mendes dos Santos quando consideram o todo, como é inicialmente sugerido por Iara Valdetaro Madeira, museóloga, e Robério Dias, Diretor do Sítio; isto é, todos os bens arrolados, e, de fato, vinculados a biografia do Paisagista, de forma indissociável. Não vejo como, nem quando, teria cabimento selecionar valores antropológicos históricos ou artísticos individualmente, para efeito de tombamento. Passou-me pela cabeça a preocupação bíblica de “separar o joio do trigo”. E ponderei, divertido, que Roberto jamais aceitaria a discriminação do joio, planta da família das gramíneas, conhecida dos especialistas como Lolium temelentum, face à tradicional e grata importância do trigo. Como dizem os franceses: justement. Acredito que, excepcionalmente, agora é o momento de proteger sem exceções. Proponho o tombamento do Sítio Burle Marx…[40].
Aprovado pela unanimidade dos membros do Conselho Consultivo, o tombamento do “Sítio Roberto Burle Marx e sua coleção museológica e bibliográfica” foi, finalmente, homologado pelo Ministro da Cultura, Francisco Weffort, em 12 de junho de 2002.
Aleijadinho, Niemeyer e Burle Marx
Quando da elaboração do diagnostico que precedeu à preparação da Política de Patrimônio Cultural Material[41], foi possível identificar o resultado de 80 anos da aplicação do instrumento de tombamento e da existência de uma política não explícita de valoração de bens culturais no Brasil. Uma ação focada em bens isolados (edificações com ou sem acervos), concentradas na região sudeste do país (46% do patrimônio nacional), particularmente nos estados do Rio de Janeiro (19%) e Minas Gerais (16%). Se observada a “autoria” dos bens valorados, percebe-se uma concentração em dois nomes. Especialmente naqueles a quem Lucio Costa destinou especial atenção, chegando a caracterizá-los como de genuína “manifestação do gênio nacional”: Antônio Francisco Lisboa e Oscar Niemeyer.
Do Aleijadinho, o Iphan tombou, além do conjunto do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, sete bens móveis, oito bens imóveis e 26 bens móveis ou integrados em igrejas individualmente acauteladas. De Niemeyer, foram 24 obras tombadas, sete conjuntos arquitetônicos e inúmeras obras protegidas em conjuntos urbanos igualmente acautelados.
Dos 1246 bens tombados pelo Iphan de 1938 a 2019, oito são de autoria de Roberto Burle Marx: o Parque do Flamengo, o Sítio Santo Antônio da Bica e as seis praças por ele projetadas para o Recife. No entanto, se considerarmos as obras do paisagista contidas em conjuntos urbanos ou arquitetônicos igualmente tombados, a lista é maior, incluindo, por exemplo, os jardins da Igreja de São Francisco de Assis; do Ministério da Educação e Saúde Pública; do Conjunto Arquitetônico da Pampulha; a praça de Cataguazes; o jardim da Igreja de N. S. da Conceição da Jaqueira, Recife; o Terreiro de Jesus em Salvador; o Parque Ibirapuera; as obras em Brasília ou de autoría de Oscar Niemeyer (como o Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Justiça, Praça dos Cristais, Palácio Jaburu, entre muitas outras).
Ocorre que, Roberto Burle Marx é o terceiro autor com mais obras protegidas pelo Iphan. Justifica-se! Suas obras são únicas. E, em última análise, representativas do esforço individual de um brasileiro na criação de uma forma de expressão paisagística genuinamente nacional.
[1] SCHLEE, Andrey Rosenthal. A história de um processo de tombamento. In. Sítio Roberto Burle Marx. Rio de Janeiro: Intermuseus/SRBM, 2020.
[2] KAMP, Renato. Roberto Burle Marx e seus pais, Cecília e Wilhelm. Revista Folha, Rio de Janeiro, n.19, 2009. p. 36.
[3] Rua Araújo Gondim, nº 46, Leme. KAMP, Renato. Roberto Burle Marx e seus pais, Cecília e Wilhelm. Revista Folha, Rio de Janeiro, n.19, 2009. p. 36.
[4] MOTTA, Flávio. Roberto Burle Marx e a nova visão da paisagem. São Paulo: Nobel, 1983. p. 182.
[5] Obra dos arquitetos Lucio Costa e Carlos Leão, executada na década de 1970.
[6] Projeto de Roberto Burle Marx com a colaboração do arquiteto Wit-Olaf Prochnik (década de 1950). A casa foi ampliada e reformada nos anos 1980 e 1990.
[7] Executados na década de 1950.
[8] Os azulejos foram pintados por Roberto Burle Marx em 1967.
[9] Executada na década\ de 1980.
[10] Projetada e executada por Guilherme Siegfried Marx entre 1957 e 1958.
[11] Projetada pelos arquitetos Rubem Breitman e Haroldo Barroso Beltrão (1963) e executados na década de 1960.
[12] Executados na década de 1980.
[13] Projetado pelo arquiteto Ary Garcia Roza, em 1989, e executado até 1992.
[14] Projetado pelo arquiteto Acácio Gil Borsói, com interiores de Janete Costa. Obra executada entre 1993 e 1994.
[15] COSTA, Lucio. Plano-piloto para urbanização da baixada compreendida entre a Barra da Tijuca, o Pontal de Sernambetiba e Jacarepaguá. Rio de Janeiro, 1956. p. 14.
[16] MOTTA, Flávio. Roberto Burle Marx e a nova visão da paisagem. São Paulo: Nobel, 1983. p. 10.
[17] COSTA, Lucio. Burle Marx. Homenagem à natureza. Petrópolis: Vozes, 1979. p.14.
[18] IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. Sítio Santo Antônio da Bica, Barra de Guaratiba/RJ. p.1.
[19] CAMPOFIORITO, Ítalo in. IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. p.2.
[20] CAMPOFIORITO, Ítalo in. IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. p.3.
[21] IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. p.10.
[22] AZEVEDO NETO, Roberto in. IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. p.18.
[23] BARROSO, Graziela in. IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. p.19.
[24] BARROSO, Graziela in. IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. p.19.
[25] No mesmo caminhou seguiram Leandro Aristegateta (sic) e George Bunting, do Jardim Botânico de Maracaibo e J. P. M. Brenan, do Real Jardim Botânico de Kew.
[26] SOUZA, Hermes in. IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. p.23.
[27] SOUZA, Hermes in. IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. p.26.
[28] Glauco Campello era o Diretor da 6ª DR/Sphan, o que equivale ao atual Superintendente do Iphan no Rio de Janeiro. Sabino Barroso era o Coordenador da Comissão de Documentação, Estudos e Tombamentos da 6ª DR.
[29] ALCÂNTARA, Antônio in. IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. p.74.
[30] MATTOS, Maria Emília in. IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. p.76.
[31] DELPHIM, Carlos Fernando in. IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. p.77.
[32] ALCÂNTARA, Dora in. IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. p.80.
[33] ALCÂNTARA, Dora in. IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. p.81.
[34] Trata-se da DTC, Diretoria de Tombamento e Conservação, que equivale ao atual Depam, Departamento de Patrimônio Material.
[35] MAFRA, Alcídio in. IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. p.81.
[36] Apenas em março de 1990 foi finalizada a planta contendo a poligonal de proteção do Sítio. Processo nº 1.131-T-84. pp.114-116.
[37] Escritura de compra e venda, de doação com encargos e outros pactos. Outorgante: Guilherme Siegfried Marx e outro. Outorgado: Fundação Nacional Pró-Memória. Livro 2407, Folhas 98, Ato 41, 11 de março de 1985.
[38] IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. pp.214-215.
[39] IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. p.015.
[40] IPHAN. Processo nº 1.131-T-84. p.075.
[41] IPHAN. Política de Patrimônio Cultural Material. Brasília: IPHAN, 2018.
*Andrey Schlee é arquiteto e urbanista, professor da Universidade de Brasília (UnB) e foi diretor do departamento de patrimônio imaterial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
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