Com certeza, as eleições figuram como os mais importantes acontecimentos do ano de 2022 no Brasil. Em particular, a escolha do próximo Presidente da República encerra uma decisão fundamental acerca de como enfrentar os principais problemas brasileiros no sentido da construção de uma sociedade livre, justa e solidária centrada na dignidade da pessoa humana em suas múltiplas facetas e manifestações (artigos 1o, inciso III, e 3o, inciso I da Constituição).
Qual o principal problema do Brasil na atualidade? A tal ameaça esquerdista, vermelha e comunista, principal cortina de fumaça para desviar a atenção da incompetência, elitismo e selvageria do bolsonarismo? A destruição das famílias (tradicionais), como se isso fosse factível ou desejável por alguém minimamente sensato? Ameaças à liberdade de manifestação e de locomoção, notadamente em teorias conspiratórias envolvendo o Supremo Tribunal Federal? Ameaças à integridade física e psicológica das pessoas, em especial com vacinas contra a Covid, identificadas como experimentais ou voltadas para maltratar e matar 90% da humanidade? A corrupção persistente ou crescente, notadamente com a atuação despudorada do Centrão, em explícita aliança com a hipocrisia bolsonarista? A profunda deterioração da imagem do Brasil no plano internacional, alimentada por posturas governamentais obtusas? O desprezo por medidas efetivas de proteção inteligente do meio ambiente, aumentando uma das mais sérias crises da civilização na atualidade justamente porque afeta a sustentabilidade do projeto humano? O aprofundamento da precariedade das condições de vida da grande maioria dos brasileiros, por conta do aumento do desemprego e do endividamento das famílias, da aceleração da inflação, da precarização das relações de trabalho, entre outros?
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A lista anterior de indagações é meramente exemplificativa. O rol é extenso e comporta questionamentos e abordagens de várias formas, inclusive contrapostas. Assim, importa separar o principal do acessório, as causas básicas dos efeitos decorrentes, o estrutural do circunstancial e o mais relevante do menos importante.
Nosso maior problema, tenho dito e reafirmado insistentemente, consiste nas profundas desigualdades sociais e na extrema pobreza decorrente. A corrupção, tão destacada, figura como uma das grandes mazelas nacionais, mas não é a maior delas. Não é a corrupção, mesmo antiga e incrustada em largos segmentos dos negócios públicos e privados, que produz as profundas diferenças socioeconômicas e a revoltante miséria da triste cena brasileira.
A pobreza, no Brasil, decorre fundamentalmente da falta de renda suficiente para que dezenas de milhões de brasileiros consigam ter uma vida digna. A corrupção no setor público, é crucial compreender, compromete, até certo ponto, o emprego de recursos nos serviços públicos fundamentais. É preciso, portanto, afirmar com veemência que a pobreza nos níveis atualmente observados no Brasil está diretamente relacionada com o capitalismo selvagem tupiniquim. Temos um modo de produção com mecanismos e instrumentos cuidadosamente construídos e ancorados na institucionalidade jurídica que concentra riquezas por um lado e subtrai, por outro, o mínimo de renda para a imensa maioria da população brasileira.
Segundo o ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em relação ao ano de 2018, o Brasil figurava entre as nações com maior grau de desigualdade socioeconômica do planeta. Estávamos em 79o lugar entre os 189 países avaliados. Na América do Sul, ficamos atrás do Chile, Argentina e Uruguai. Entretanto, aparecemos como a maior economia da América Latina e a nona do mundo, conforme a atualização de abril de 2018 do World Economic Outlook Database do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Publicidade“O Brasil permanece um dos países com maior desigualdade social e de renda do mundo, segundo o novo estudo lançado mundialmente nesta terça-feira (7/12) pelo World Inequality Lab (Laboratório das Desigualdades Mundiais), que integra a Escola de Economia de Paris e é codirigido pelo economista francês Thomas Piketty, autor do bestseller O Capital no Século 21, entre outros livros sobre o tema. (…) O estudo se refere ao Brasil como ‘um dos países mais desiguais do mundo’ e diz que a discrepância de renda no país ‘é marcada por níveis extremos há muito tempo’ ”.
Dados recentes, veiculados pela grande imprensa, ilustram o terrível quadro de apropriação e utilização da riqueza produzida atualmente na sociedade brasileira. Eis alguns desses dados destacados na perspectiva dos graves contrastes socioeconômicos vivenciados:
a) “Mercado imobiliário de luxo cresce 81% em lançamentos” (fonte: site da BBC) e “Em dois anos, população de rua em São Paulo aumenta mais de 30%” (fonte: site do G1);
b) “Porsche bate recorde de vendas no Brasil em 2020/2021” (fonte: site da BBC) e “Entre 2012 e 2022, a fatia de domicílios brasileiros que integra as classes D e E aumentou de 48,7% para 51%” (fonte: site do G1);
c) “Espera para compra de helicópteros chega a 20 meses” (fonte: site da BBC) e “Endividamento bate novo recorde e atinge 74,6% das famílias” (fonte: site do G1);
d) “Os 2% da população de ricos, representa 20% do consumo no mercado brasileiro” (fonte: site da BBC) e “Luz mais cara já força 22% dos brasileiros a atrasar a conta para comprar comida” (fonte: site da Folha de S. Paulo);
e) “Investimento financeiro brasileiro no exterior é recorde” (fonte: site da BBC) e “Brasil tem a 4ª maior taxa de desemprego do mundo, aponta ranking com 44 países” (fonte: site do G1).
Portanto, a disputa eleitoral de 2022 pode, e deve, ser um relevantíssimo momento no processo de conscientização política de que não estamos, na essência, diante simplesmente do confronto de nomes (e suas simpatias e antipatias), fantasias, fantasmas, lados ou cores. Importa reconhecer as causas estruturais das mazelas que assolam o Brasil por décadas (séculos, a rigor) e identificar (até mesmo formular) projetos populares e democráticos de superação desse estado de coisas profundamente injusto e violador da dignidade humana. Afinal, dezenas de milhões de brasileiros não merecem, nem precisam, considerando objetivamente o volume de riquezas produzidas, serem privados até mesmo da alimentação diária.
Não custa lembrar, como fecho destas modestas linhas, a principal mensagem do livro “O nível”, de Richard Wilkinson e Kate Pickett. A referida obra, com base em inúmeros estudos e análises de várias áreas das relações sociais, pondera que “em vez de provocar efeitos restritos aos pobres, a desigualdade afeta a grande maioria da população”. Assim, “uma sociedade mais igualitária é melhor para todos”.
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