*Clarice Ferraz
O setor elétrico brasileiro tem enfrentado uma série de incertezas e desafios nos últimos anos. Questões como a privatização da Eletrobras e a forma como todo o processo ocorreu, com imediatos e subsequentes danos como o alto índice de demissões da mão de obra especializada, apagões recorrentes e a busca mal planejada pelas chamadas fontes de energia limpa, têm permeado decepções e, no dia a dia da população, gerado um ambiente de insegurança para a sociedade e para o crescimento econômico do país. Nesse contexto, o recente encontro entre o presidente Lula e especialistas do setor elétrico insatisfeitos com o rumo das políticas governamentais surge como um marco de diálogo na busca por possíveis soluções.
Realizada em Brasília no último dia 10 de abril, a reunião trouxe para o palco as tarifas elevadas (e que continuarão a aumentar), e as frequentes (e cada vez mais graves) falhas no fornecimento de energia elétrica. O encontro debateu ainda os desafios relacionados à transição energética, que são justamente a questão do preço e da qualidade, em meio à transformação tecnológica que ocorre no setor.
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Para que a redução pontual das tarifas alcançada pela Medida Provisória, assinada na véspera do encontro, seja preservada, é preciso atuar sobre a trajetória de aumento de preços. Lula ainda possui quase três anos de governo pela frente. Tempo suficiente para que a primeira bandeira vermelha que venha a ser acionada pela Aneel já tenha anulado a redução alcançada. E há ainda muitas bombas para explodir…
Podemos e devemos adotar alguns pontos que ajudem a combater a trajetória de aumento de preços, em harmonia com as necessidades de uma transição energética justa e sustentável em todos os sentidos. Se o problema é sistêmico, é preciso que a resposta também seja. Precisamos usar da melhor maneira os recursos de que dispomos, e a boa notícia, é que são muitos. Algumas medidas sugeridas ao presidente foram:
- Diluir o efeito da descotização da eletricidade barata da Eletrobras. Estruturada em cinco anos, pode ser diluída em dez, como está na lei da privatização. Aqui basta uma Resolução do CNPE para que tenhamos que lidar com um problema 50% menor nos próximos anos de governo e para garantirmos a energia mais barata para o mercado regulado, mais fortemente impactado pelas tarifas, e o mais onerado pelos subsídios.
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- Voltar a ter controle sobre os ativos estratégicos da transição, que são os que fornecem armazenamento e flexibilidade para o sistema. Aqui falamos dos nossos reservatórios e das linhas de transmissão, concentrados nas mãos da Eletrobras. O controle desses ativos é essencial para a garantia da segurança de abastecimento e para o controle das tarifas, além da gestão adequada dos nossos recursos hídricos. É que o têm feito diversos países, como a França, que reestatizou a EdF, e a Alemanha, que está negociando a compra de linhas de transmissão que passam por seu território. Em nenhum outro país as grandes hidrelétricas estão sob controle privado.
- Seguindo nessa linha, a garantia da segurança de abastecimento e da soberania nacional passam inexoravelmente pelo desenvolvimento de tecnologias próprias, adequadas às nossas necessidades e especificidades. Precisamos de pesquisa e desenvolvimento para implementarmos as inovações necessárias a descartar. Assim, é necessário e urgente que se promova o resgate do CEPEL, maior centro de tecnologia em sistemas elétricos da América Latina, que está sendo sucateado pela Eletrobras. Se a empresa continuar com a atual estrutura de governança, será necessário desvinculá-lo e fortalecê-lo.
- Atuar sobre a degradação da qualidade do serviço, em particular na distribuição. Estamos diante de um gravíssimo problema relacionado ao marco regulatório em vigor. Há incentivos ao investimento em capital e, em paralelo, à redução dos gastos com manutenção e com mão de obra. Essa dinâmica no atual ambiente de mudanças climáticas e de rápida evolução tecnológica tem se mostrado um desastre. Há falta de manutenção e de mão de obra qualificada e estabilizada no setor. Não temos trabalhadores suficientes para prestar a manutenção adequada ao parque existente, e muito menos para realizar os trabalhos de modernização da rede que precisam de profissionais altamente qualificados. Essa falta se traduz em falhas do serviço que, por sua vez, se traduzem em aumentos das tarifas. Aqui é preciso uma revisão do marco regulatório atual para corrigir as distorções existentes e trazer novos incentivos, adequados à atual realidade do setor, além de um plano nacional de formação e de estabilização da mão de obra, em parceria com estados e municípios. Esse plano traz a geração de muitos empregos e um recado muito importante para a população: o presidente e o governo estão preocupados com os apagões, com a tarifa e com os trabalhadores.
- Por último, é preciso chamar atenção para a necessidade de observarmos de forma sistêmica o Setor Elétrico Brasileiro, e, de forma mais pragmática, a expansão das energias eólica e solar. Os custos da integração dessas fontes no sistema vão muito além dos subsídios. Estamos falando de custos relacionados ao uso ineficiente da operação das usinas hidrelétricas, sob o ponto de vista econômico e ambiental, pagamento por serviços ancilares, leilões de capacidade, novas linhas de transmissão e subestações. Além disso, com relação à qualidade e à durabilidade dos empregos, estamos falando sobretudo de empregos com poucos meses de duração durante a instalação e, depois, quase nada. O enorme empreendimento de geração solar fotovoltaica de Mendubim, inaugurado em 09 de abril de 2024, com R$ 2 bilhões de investimento, irá funcionar empregando 32 pessoas, que sobretudo capinarão o terreno. São poucos postos de trabalho e não são empregos que contribuem para sanar o problema da baixa renda dos brasileiros. As vagas com potencial de melhorar essa dinâmica são justamente aquelas associadas à engenharia e à P&D, como no CEPEL, e à mão de obra especializada para a execução de manutenção e modernização das redes.
É compreensível que as vozes de especialistas do setor elétrico ecoem preocupadas. Temos muito trabalho a fazer e um longo caminho a percorrer. Nesse contexto, o encontro entre o presidente Lula e os representantes do setor elétrico simboliza uma oportunidade única para redefinir os rumos da energia no Brasil. A disposição para o diálogo e a busca pelo entendimento são um primeiro passo, crucial, para a construção de soluções concretas, que revertam a trajetória desestruturante de degradação do serviço e de aumento de tarifas. A construção de uma política energética robusta e resiliente requer a participação ativa de todos, garantindo que as decisões tomadas estejam em consonância com os interesses coletivos e o bem-estar da população. Este é, acima de tudo, o dever e a missão de um governo.
Clarice Ferraz, economista, diretora do Instituto Ilumina – Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético