Bruno Moretti* e Édrio Nogueira**
A Emenda Constitucional nº 109 – EC 109/2021 foi aprovada em 2021, tendo por objetivo principal autorizar o pagamento do auxílio emergencial, fora das regras fiscais vigentes, tendo em vista o recrudescimento da pandemia naquele momento.
A EC 109 também trouxe mudanças estruturantes na Constituição, dispondo sobre a ativação dos gatilhos de contenção de despesas quando os entes federados ultrapassassem determinados indicadores fiscais. Diversos analistas apontaram que os gatilhos para a União não seriam acionáveis no curto prazo, de modo que o texto não reforçaria as políticas de austeridade fiscal em âmbito federal.
No entanto, a EC 109 trouxe outro dispositivo que vem gerando forte efeito sobre diversas políticas públicas. Trata-se da possibilidade de utilizar, até o final de 2023, o superávit financeiro das fontes de recursos dos fundos públicos do Poder Executivo, apurados ao final de cada exercício, para amortização da dívida pública. Antes da aprovação da emenda constitucional, receitas não utilizadas no âmbito de fundos públicos permaneciam vinculadas às respectivas finalidades legais.
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Para compreender o alcance da medida, importa tratar das suas conexões com o Novo Regime Fiscal, instituído pela Emenda Constitucional nº 95 – EC 95/2016. O teto de gastos congela as despesas primárias da União por vinte anos. Como determinadas despesas seguem crescendo em termos reais, especialmente as previdenciárias, na prática, a EC 95 determina a redução real dos demais gastos, principalmente os discricionários.
Recentemente, mudanças constitucionais flexibilizaram o teto de gasto, alterando sua fórmula de cálculo e limitando o pagamento de precatórios. As alterações acresceram R$ 113 bilhões ao orçamento de 2022. Ainda assim, rubricas estratégicas ao país, como as vinculadas à ciência e tecnologia, à educação e à pesquisa, seguem em queda. Entre 2014 e 2021, o orçamento discricionário do CNPq teve queda real de 64%; o da CAPES, de 59%.
A redução de gastos do CNPq e da CAPES é um sintoma do regime fiscal restritivo, mas também das escolhas alocativas que reforçam despesas com baixo efeito multiplicador e redistributivo e subtraem qualidade do orçamento público. Reajustes a corporações específicas e o elevado valor das emendas de relator (cerca de R$ 33 bilhões em 2021 e 2022) são suficientes para ilustrar a tese.
O caso do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FNDCT é paradigmático. Criado em 1969, o fundo tem papel de destaque no financiamento de iniciativas estruturantes, relacionadas a áreas como meio ambiente, saúde e defesa. Entre 2016 e 2020, R$ 13 bilhões do FNDCT deixaram de ser executados, tendo em vista sua manutenção em reserva de contingência. A prática foi vedada pela Lei Complementar nº 177, de 2020. Contudo, em 2021, uma manobra autorizou o contingenciamento dos recursos do fundo, por meio de uma alteração à lei de diretrizes orçamentárias, abrindo espaço no orçamento a outros gastos.
Se a EC 95 reduz diversas despesas primárias e implica a inexecução de recursos vinculados a fundos públicos, a EC 109 assegura a desvinculação desses recursos, quando se convertem em superávit financeiro na Conta Única do Tesouro. Por exemplo, em 2021, R$ 22,5 bilhões do superávit da fonte 72 – Outras Contribuições Econômicas foram canalizados para a dívida pública. Segundo dados do Tesouro Nacional, em 2020, R$ 17,3 bilhões do superávit financeiro da referida fonte eram vinculados ao FNDCT.
Em 2021, não foram executados R$ 4,5 bilhões do FNDCT, relacionados à fonte 72. Tais recursos também poderão ser destinados para a dívida pública em 2022. As razões da baixa execução envolvem o contingenciamento do fundo (R$ 2,5 bilhões), como também o elevado teto de 50% para alocação dos recursos do FNDCT na modalidade reembolsável (não computada no teto de gasto) e voltada a empréstimos a empresas, para os quais há baixa demanda no atual contexto.
Desta forma, para os anos de 2021 e 2022, a expectativa é que quase R$ 22 bilhões sejam retirados do FNDCT como decorrência da EC 109, apenas considerando a fonte 72. Uma vez convertidas em superávit financeiro, as receitas vinculadas à ciência e tecnologia são “descarimbadas” e utilizadas para pagamento da dívida pública, ainda que o Tesouro não enfrente restrições de liquidez atualmente.
Após a crise financeira de 2008 e a COVID-19, a literatura sobre regras fiscais vem avançando em direção à defesa de arranjos capazes de conferir maior flexibilidade à política fiscal e preservar investimentos estratégicos, envolvendo mudanças produtivas, tecnológicas, sociais e ambientais.
No entanto, o Brasil caminha na contramão do debate e da experiência internacionais. A combinação de regras rígidas, flexibilização fiscal seletiva e ênfase em gastos de baixa qualidade vem afetando, em particular, o desenvolvimento científico e tecnológico do país.
O saldo do atual regime fiscal é a absorção no orçamento de demandas de grupos com acesso privilegiado aos fundos públicos, o corte de gastos estratégicos como os de ciência e tecnologia e a desvinculação de suas receitas em favor da ampliação da liquidez do Tesouro Nacional para a administração da dívida.
Como se pode vislumbrar, não se trata apenas de um obstáculo fiscal, mas de um regime que esvazia a capacidade estatal de construção de um futuro próspero e inclusivo, drenando recursos para atender a pressões financeiras, corporativistas, eleitorais e, por vezes, clientelistas.
A captura do orçamento público é notória. É urgente reformá-lo, reconectando-o aos desafios estruturais da sociedade brasileira, especialmente os relacionados ao desenvolvimento científico e tecnológico e à inovação.
Resposta da Capes
Após a publicação do artigo, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) entrou em contato com o Congresso em Foco solicitando direito de resposta.
Leia abaixo o posicionamento da instituiçãos aos pontos levantados no artigo de Bruno Moretti e Édrio Nogueira:
Em relação ao artigo “O orçamento brasileiro na contramão do desenvolvimento científico e tecnológico”, a CAPES informa que o orçamento inicial de 2022 da Fundação é maior do que o de 2021. Subiu para R$ 3,8 bilhões contra R$ 3,01 bilhões no ano passado, um aumento de 27%. Além disso, o número de bolsas de mestrado e doutorado concedidas por meio de programas institucionais subiu de 80.272, em 2020, para 84.336 em março de 2022.
A CAPES tem ampliado o apoio à pesquisa e formação de profissionais e pesquisadores. Como exemplos, os programas de combate à Covid, de desenvolvimento da pós-graduação nos estados, na Amazônia Legal, na região do semiárido, e de pós-doutorado. Na área internacional, um exemplo de ação é a publicação do edital para a concessão de 1.400 bolsas de doutorado-sanduíche no exterior.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.
*Bruno Moretti é economista pela UFF, mestre em Economia pela UFRJ e doutor em Sociologia pela UnB
**Édrio Nogueira é assessor de orçamento no Senado Federal, especialista em orçamento público e pós-graduando em Orçamento Público pelo Instituto Legislativo Brasileiro – ILB