Guilherme Narciso de Lacerda e Maurício Borges Lemos*
Não se escreve a história econômica contemporânea do Brasil sem levar em conta o papel do BNDES desde sua fundação em 1952. Ao longo dos tempos o banco gerou projetos e estruturou recursos financeiros e técnicos para viabilizar soluções imprescindíveis para o País. A sua atuação foi singular no desenvolvimento tecnológico, industrial, da infraestrutura, mas também dos produtos financeiros para o comércio/serviços, a agropecuária e a modernização de entidades públicas estaduais e municipais em todo o país. Além disso, o Banco passou desde os anos 1980 a ser uma referência para a estruturação de políticas sociais e para o meio ambiente.
As manifestações de regozijo de que o BNDES passou a se destacar como um grande estruturador de projetos desde 2016, como se nada tivesse sido implantado antes, estão fora de sintonia do que foi o Banco nos anos anteriores e especialmente desde a virada do século. Os avanços nos atuais trabalhos de estruturação de projetos só estão sendo possíveis porque antes foram construídas as suas bases legais e porque houve um forte investimento em conhecimento técnico dos arranjos institucionais necessários às realizações de licitações para concessões simples ou parcerias público-privadas. Até 2015 o banco já tinha estruturado e financiado centenas de projetos, especialmente de infraestrutura, e a maioria em parceria com bancos privados; os dados estão disponíveis para quem duvidar.
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Ocorre que desde 2016 o BNDES foi perdendo sua função como organizador de funding para os projetos econômicos estruturantes. O banco passou a atuar quase que exclusivamente como uma agência coordenadora de consultorias para projetos. A perda de protagonismo do banco foi um desdobramento de um tsunami impatriótico de denúncias vazias sobre a sua atuação. O discurso de que ele era portador de uma “caixa preta” ganhou força no movimento político em 2015 e desembocou numa varredura sem igual em tudo que o banco fazia. Depois, ficou comprovado que os ataques desferidos ao banco eram injustos pois não condiziam com a realidade. Tal como aqueles ataques que ficarão no rodapé da história, são impróprios os discursos atuais de que, agora sim, o banco é eficiente e que antes ele primava pelo apoio a obras desnecessárias e era causador de ruídos no sistema de crédito brasileiro.
Na verdade, o BNDES nos últimos cinco anos teve uma queda vertiginosa de seu papel como vetor indutor do desenvolvimento. No triênio 2012-2014 o total anual médio de desembolsos do banco foi de R$178,1 bilhões, em valores correntes. Já no triênio 2017-2019 este total anual ficou em apenas R$65,1 bilhões, ou seja, apenas 36,5% do que era antes (e sem considerar o efeito inflacionário). E não apenas isso: quando consideramos o passado um pouco mais distante, por exemplo, o quatriênio 2001-2004, correspondendo aos dois últimos anos do governo FHC e aos dois primeiros do governo Lula, os empréstimos do período recente de 2020-2021 não vão além de 40% dos realizados naquele período. Por sua vez, a taxa média anual de investimentos em relação ao PIB do triênio 2012-2014 passou de 20,5% para 15,0%, em 2017-2019, enquanto a taxa média de crescimento anual do PIB foi de 1,81% para 1,5% nos mesmos períodos. Esses números mostram uma verdade incontestável: a queda do financiamento às empresas acompanha a debacle no investimento nacional e está diretamente associada ao solapamento do crescimento econômico do país.
Não deveria haver dúvidas de que a complexidade da economia brasileira e as dimensões de carências infraestruturais e sociais existentes exigem que haja um forte banco de desenvolvimento atuando em articulação com o sistema financeiro privado nacional. Não basta atuar como uma consultoria de projetos; é preciso ir além e oferecer alternativas financeiras para a iniciativa privada executar os projetos concedidos. A ideia de financiar projetos de infraestrutura (ou de instalação/ampliação de sites produtivos) exclusivamente por linhas de crédito privadas é falaciosa e desconsidera a dinâmica do desenvolvimento econômico. É bom lembrar que na maioria das economias de mercado há agências de desenvolvimento multilaterais ou públicas atuando como coordenadoras de projetos, especialmente de infraestrutura.
Na verdade, matérias como a assinada por Vinícius Nader (“Com novo papel, BNDES estrutura concessões e PPPs que mobilizam R$358 bilhões” AE News, 19/12/2021) tendem a produzir certa incredibilidade, embora, numa primeira aproximação, tenhamos dificuldade em precisar onde está o problema numa notícia como esta. Identificamos, entretanto, duas graves questões estruturais que este tipo de notícia esconde (ou dá como resolvidas).
A primeira e mais importante fica mais clara quando tentamos responder à seguinte pergunta: por que a construção de uma infraestrutura física adequada é sempre um problema, inclusive nos países ricos, tornando-se uma deficiência endêmica nos países menos desenvolvidos? Resumidamente, o problema explica-se pelo fato da infraestrutura exigir grandes imobilizações de capital fixo, as quais dificilmente irão permitir taxa de retorno aceitável pelo mercado. Viabilizá-las diretamente pelo Estado implica as deficiências de sempre, tanto orçamentárias quanto de custos de transação e obstáculos burocráticos. Uma saída via PPPs tenderia a funcionar, desde que se resolvesse a questão das garantias, isto é, a de que o setor público viesse a honrar, a tempo e hora, sua contrapartida nos investimentos. Por uma série de razões, este problema não está devidamente equacionado, seja quando pensadas em quaisquer das três instâncias de governo, seja quando o modelo de PPP exige uma interação de atores públicos e a iniciativa privada. Pode até ser que, em algumas situações, como no caso da linha 6 do metrô de SP, encontre-se uma saída singular para realizar a PPP. Mas a regra geral é a de que não existe almoço grátis, e PPPs sem garantia líquida e certa não passam de autoengano ou enganação. E a “saída” do governo Bolsonaro para este problema pode ser ilustrada por dois exemplos.
A BR-262 é a importante rodovia que liga Vitória ao Triângulo Mineiro passando, por Belo Horizonte e que se encontra há muitos anos (no mínimo 30 anos) necessitando de uma duplicação. Com traçado sinuoso, o problema vem sendo procrastinado pelo vários governos, já tendo ficado claro, desde o governo Dilma, que o caminho para uma eventual solução seria uma PPP. Mas ao invés de se avançar no detalhamento do projeto e da solução das garantias, o atual governo optou por estender o prazo da concessão (longos 35 anos) e dilatar o prazo dos investimentos de duplicação.
Um outro exemplo é a privatização da Cedae no estado do Rio de Janeiro. É provável que se tenha ganhos gerenciais neste processo, já que a Cedae tem sido há vários anos classificada como uma companhia de saneamento com grandes deficiências operacionais e administrativas. Todavia, da forma em que as concessões por áreas de atuação foram conduzidas há fortes indícios de que o discurso governamental respaldado na capa protetora do BNDES, esteja vendendo gato por lebre: como seria resolvido o problema da Baixada Fluminense, região de baixa renda, com problemas estruturais de saneamento, cujo esgoto a céu aberto é despejado na Baía da Guanabara? A resposta é: só uma PPP, envolvendo recursos e compromissos dos três níveis de governo, com projetos de investimento muito bem estruturados em termos de garantias. E qual a “solução” adotada? Concessões de longuíssimo prazo e obrigações de investimentos privados aquém do necessário para suprir as carências existentes em um tempo razoável. Assim, tal como no caso da BR 262, os investimentos urgentes e imprescindíveis serão realizados se Deus quiser, algum dia. E a culpa, se isso não ocorrer, será dos governos futuros…
Em suma, esse discurso arrogante, que está a anunciar a descoberta da roda, não resiste a um mínimo de análise, sendo que para os incautos recomenda-se o teste de São Tomé: quanto, para começar, será investido neste ano de 2022, em que o governo Bolsonaro está nas cordas, necessitando urgentemente ser vitaminado para evitar um crescimento próximo de zero? A resposta é: muito pouco ou nada. A rigor, o problema é jogado para a frente, sugerindo-se que um eventual fracasso ficaria por conta dos governos futuros. E, se, por exemplo, o governo que tomar posse em 2023, resolver começar imediatamente a duplicação da BR 262, ele terá de negociar (ao invés de licitar para encontrar concorrencialmente a melhor proposta numa PPP) com um concessionário já com direitos, embora com obrigações de investimento mal definidas e diluídas a perder de vista no tempo.
A segunda questão estrutural desta fake news sobre o BNDES parte da ideia de se desenhar um novo papel para o banco como coordenador de consultorias na montagem de grandes projetos. Em princípio não há nenhum problema nessa missão. De fato, o banco sempre cumpriu esse papel nos seus quase 70 anos de existência. A questão é que qualquer Banco de Desenvolvimento (como o BIRD ou o BID) ou mesmo agências privadas de investimento, obtêm o retorno de sua atividade de coordenação por meio de participação no financiamento ou mesmo com investimento em renda variável, sendo o custo administrativo um dos componentes da definição do spread básico cobrado. O problema é que, desde 2016, a política adotada tem sido a de diminuir drasticamente os empréstimos, como mencionado acima, agravado por uma política igualmente nefasta de liquidar as suas participações acionárias.
Há mais de cinco anos que a carteira do banco vem sendo vendida, o que tem gerado um lucro anual significativo. Isso seria saudável, já que ligado a um dos objetivos centrais da política de renda variável. Entretanto, infelizmente, essa carteira não está sendo reciclada em novas participações, apenas direcionando-se boa parte dos recursos coletados e dos dividendos para o governo federal. Além de empobrecer as alternativas de investimento da já pouco diversificada bolsa de valores brasileira, a política que está em andamento é a do herdeiro rico vangloriando-se da venda com lucro de seu patrimônio e gastando (ao invés de investir) o resultado. A persistir tal modelo caminha-se para o fechamento a médio prazo do próprio Banco.
Enfim, recomenda-se cautela na difusão de loas referentes aos projetos que estão sendo trabalhados. É positivo que eles existam e a tarefa de estruturá-los é valiosa. A economia brasileira está travada e será indispensável ter projetos, mas também é indispensável ter arranjos financeiros para tirá-los do papel. Os investimentos só serão executados quando se reinstalar no país um ambiente de interlocução sadia e respeitosa entre empreendedores e gestores públicos. Nestas condições, uma instituição pública relevante como o BNDES voltará a ser um dos principais indutores do desenvolvimento brasileiro para a construção de uma sociedade mais justa, com expansão produtiva e distribuição de renda para valer.
*Guilherme Narciso de Lacerda, doutor em Economia pela Unicamp, mestre em Economia pelo IPE-USP, professor (após.) Departamento de Economia da UFES. Ex-diretor do BNDES (2012-2015). Autor do livro “Devagar é que não se vai longe – PPPs e Desenvolvimento Econômico”, publicado em 2020 pela Editora LetraCapital
*Maurício Borges Lemos, doutor em Economia pela Unicamp. Professor titular (após.) da UFMG, ex-Secretário de Planejamento de Belo Horizonte. Ex-Diretor do BNDES (2003-2016).
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