Luiz Alberto dos Santos*
A proximidade do prazo final para que sejam aprovadas e sancionadas leis que aumentem a despesa com pessoal e encargos da União no exercício de 2022 (4 de julho), em vista do disposto no art. 21 da Lei de Responsabilidade Fiscal, alterada pela Lei Complementar nº 173, de 2020, tem causado grande inquietação aos servidores públicos, mas, aparentemente, também ao Governo.
Depois de um verdadeiro processo de “enrolação”, tendo perdido todas as oportunidades para adotar as medidas necessárias a promover reestruturações de carreira ou conceder revisão geral em 2022 – e a data-base do servidor federal, nos termos da Lei nº 10.331, de 2001, é o mês de janeiro de cada ano -, e após anunciar, ainda em junho de 2021, a possibilidade da concessão de reajuste linear de 5% a todos os servidores, finalmente, um ano depois, o Presidente da República “jogou a toalha”, e disse, efetivamente, que não haverá reajuste para os servidores em 2022.
Na hipótese da concessão de uma revisão geral, linear, de 5% a partir de julho de 2022, o aumento na despesa total oscilaria entre R$ 6,8 e R$ 9,1 bilhões, a depender a inclusão ou não de militares das Forças Armadas no reajuste.
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O volume dessa despesa – que, em 2023, praticamente duplicaria – e as limitações do art. 107 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (teto de gastos) obrigariam o governo a, para não ultrapassar o teto, promover cortes elevados em outras despesas, inclusive de pessoal, custeio e investimento, atingindo as áreas de educação, saúde e ciência e tecnologia, entre outras, com efeitos negativos para o conjunto da população.
Daí, surge, novamente, a ideia mágica de, em lugar de elevar a despesa com pessoal, conceder reajuste, por meio de ato do Chefe do Executivo, ou mesmo de seu Ministro da Economia, no valor do auxílio-alimentação devido aos servidores do Executivo. Em 13 de junho de 2022, o Presidente afirmou pretender “dobrar, no mínimo, o valor do auxílio-alimentação”, ainda em 2022.
O anúncio de que essa medida estaria sob exame não é novo. Desde o final de 2021, essa hipótese vinha sendo ventilada.
Contudo, a Lei de Diretrizes Orçamentárias para o ano de 2022 (Lei nº 14.194, de 20 de agosto de 2021), fruto da sanha fiscalista de Bolsonaro e Guedes, consignou regra expressa, no artigo 120, vedando o reajuste, no exercício de 2022, de auxílio-alimentação ou refeição, auxílio-moradia e assistência pré-escolar.
Além disso, a LDO determina no seu art. 12 que a Lei Orçamentária e seus créditos adicionais discriminarão, em categorias de programação específicas, as dotações destinadas a “benefícios concedidos aos servidores civis, empregados e militares e aos seus dependentes, exceto com assistência médica e odontológica”. Nessa programação, estão incluídas as despesas com o auxílio-alimentação, no âmbito de cada Poder, órgão e entidade.
A LDO determina, ainda, em seu art. 44, § 13, que “serão encaminhados projetos de lei específicos, quando se tratar de créditos destinados ao atendimento de despesas com pessoal e encargos sociais, benefícios aos servidores civis, empregados e militares, e a seus dependentes constantes da Seção I do Anexo III, indenizações, benefícios e pensões indenizatórias de caráter especial e sentenças judiciais, inclusive aquelas relativas a precatórios ou consideradas de pequeno valor”.
Assim, para aumentar a despesa com esses benefícios, além da alteração à própria LDO, afastando a proibição contida no seu art. 120, seria necessário alterar a Lei Orçamentária, mediante projeto de lei específico.
Porém, se ignorada a literalidade do art. 44, §13 da LDO, poderia ser feita a suplementação, por meio de decreto, com base no art. 4º, II, “a”, 1 da LOA 2022, que permite a abertura de créditos suplementares para o aumento de dotações fixadas pela LOA, mediante o cancelamento de dotações classificadas como “resultado primário 1”, como é o caso, por exemplo, da dotação consignada para pessoal e encargos na LOA 2022 no Ministério da Economia, e que estavam “reservadas” para eventual reestruturação de carreiras no Executivo.
A solução imaginada pelo Governo, como substitutiva da “revisão geral” Viúva Porcina, a que foi sem nunca ter sido, implicaria em despesas adicionais relevantes, mas, sob essa perspectiva, suportáveis.
Atualmente, o Poder Executivo pratica o valor de R$ 458,00 mensais para seus servidores, a título de auxílio-alimentação.
Nos demais poderes, os valores mensais são de R$ 1.010,00, para os servidores do Tribunal de Contas da União, R$ 982,00 para Câmara e Senado, e R$ 910,00 para os servidores do Judiciário.
Com base no valor atual, considerada a força de trabalho do Executivo (cargos efetivos e comissionados), de 572.913 servidores no mês de abril de 2022, a despesa mensal é da ordem de R$ 262,4 milhões.
A elevação do valor do auxílio-alimentação para R$ 910,00, equiparando-o ao Judiciário, com um reajuste de quase 100%, aumentaria essa despesa mensal para R$ 521,4 milhões, aproximadamente.
Considerando-se os seis meses até o final de 2022, o acréscimo na despesa total do Poder Executivo – o único a ser beneficiado – chegaria a R$ 1,55 bilhões, ou seja, menos do que os R$ 1,9 bilhões reservados para reestruturação de carreiras, e que o próprio Governo já considerava utilizar para cobrir outras despesas.
Há que se considerar, porém, além das necessidades de alteração na LDO e no Orçamento da União de 2022, se essa alternativa fere ou não tanto a Lei Eleitoral, quanto a Lei de Responsabilidade Fiscal.
É questão complexa, e inédita.
Inicialmente, observa-se que a Lei Eleitoral é silente sobre essa situação. Ela se refere a condutas vedadas aos agentes políticos em períodos determinados em ano eleitoral. Para evitar abuso do poder econômico e medidas que interfiram na igualdade entre candidatos, a Lei Eleitoral em seu art. 73, VIII, veda “fazer, na circunscrição do pleito, revisão geral da remuneração dos servidores públicos que exceda a recomposição da perda de seu poder aquisitivo ao longo do ano da eleição …”, a partir de cento e oitenta dias antes da eleição, ou seja, a partir de 5 de abril de 2022 até a posse dos eleitos, sob pena de suspensão imediata da conduta vedada, multa e cassação do registro do candidato ou do diploma do eleito que tenha sido beneficiado, agente público ou não.
A Lei Eleitoral também veda, no art. 73, V, suprimir ou readaptar vantagens ou por outros meios dificultar ou impedir o exercício funcional de servidor público, nos três meses que o antecedem e até a posse dos eleitos, mas nada fala sobre aumentar vantagens de servidores.
Já a LDO considera, no art. 102, § 1º, que não constituem despesas com pessoal e encargos sociais, ainda que processadas em folha de pagamento, entre outras, as relacionadas ao pagamento de auxílios alimentação ou refeição e quaisquer outras indenizações, exceto as de caráter trabalhista previstas em lei.”
A LRF, no art. 21, II, considera “nulo de pleno direito” o ato de que resulte aumento da despesa com pessoal nos 180 dias anteriores ao final do mandato do titular de Poder ou órgão; o inciso IV, também considera nulas a aprovação, a edição ou a sanção de norma legal contendo plano de alteração, reajuste e reestruturação de carreiras do setor público quando resultar em aumento da despesa com pessoal no mesmo período.
Essa norma, porém, se refere, diretamente, a “despesa com pessoal”, e a valer a definição contida na LDO, não afetaria o aumento da despesa com auxílio-alimentação.
Contudo, trata-se de um artifício contábil, visto que o auxílio-alimentação é, com efeito, um “encargo trabalhista”, de execução obrigatória.
Nos termos do seu art. 18, para os fins da Lei de Responsabilidade Fiscal, “entende-se como despesa total com pessoal: o somatório dos gastos do ente da Federação com os ativos, os inativos e os pensionistas, relativos a mandatos eletivos, cargos, funções ou empregos, civis, militares e de membros de Poder, com quaisquer espécies remuneratórias, tais como vencimentos e vantagens, fixas e variáveis, subsídios, proventos da aposentadoria, reformas e pensões, inclusive adicionais, gratificações, horas extras e vantagens pessoais de qualquer natureza, bem como encargos sociais e contribuições recolhidas pelo ente às entidades de previdência.”
Essa norma, igualmente, não alcança o auxílio-alimentação, posto que se refere a “espécies remuneratórias” e a “encargos sociais”.
Sendo a parcela de caráter indenizatório, e não “remuneratório”, estaria excluída da aplicação das demais regras previstas na LRF. E o conceito de “encargos sociais”, a rigor, só alcançaria obrigações legais como o recolhimento de contribuição previdenciária patronal, FGTS e obrigações parafiscais.
Assim, resta a questão de, sendo “encargo trabalhista”, estar ou não o auxílio alimentação incluído na ressalva final feita pela LDO, quando considera como despesa com pessoal as indenizações “de caráter trabalhista previstas em lei.”
O Tribunal Superior do Trabalho adota entendimento de que, que, quando há participação do empregado no custeio do auxílio-alimentação fornecido pela empresa, o benefício terá natureza indenizatória, e não salarial (RR – 1368-56.2017.5.08.0016, DEJT 07/05/2021). De outra forma, não havendo a participação do empregado no custeio – como ocorre no serviço público – ele teria “natureza salarial”, e não indenizatória, tanto mais que pago em espécie, diversamente do que prevê a CLT no art. 457, § 2º, quanto aos empregados por ela regidos.
Embora o STF tenha reconhecido caráter indenizatório do auxílio-alimentação do servidor público, mas para os fins de excluir a incidência do direito à aposentadoria integral e paridade entre ativos e inativo, exsurge a dúvida sobre se, sendo parcela nitidamente trabalhista, embora não celetista, no caso do servidor efetivo, o auxílio alimentação é ou não despesa com pessoal, para os fins da Lei de Responsabilidade Fiscal.
E, ao teor do acima exposto, nos parece haver dúvida suficiente para impedir a elevação de seu valor, como forma de burla à necessidade da lei concessiva da revisão geral anual, ou de concessiva de reestruturação remuneratória, notadamente em face da proximidade do prazo de vedação contido no art. 21, II e IV da LRF.
Além disso, incorreria a autoridade em crime previsto no art. 359-G do Código Penal, que tipifica como crime contra as finanças públicas “ordenar, autorizar ou executar ato que acarrete aumento de despesa total com pessoal, nos cento e oitenta dias anteriores ao final do mandato ou da legislatura”, com pena de reclusão, de 1 a 4 anos.
E por fim, quanto à Lei Eleitoral, ainda que não haja previsão expressa que inclua no rol de condutas vedadas o aumento da despesa com pessoal, ou de parcela indenizatória trabalhista, o fato é que, tendo a natureza híbrida de parcela indenizatória, mas também salarial, o auxílio-alimentação, ao ter seu valor aumentado às vésperas do pleito, poderá caracterizar afronta à vedação de abuso de poder econômico e político em favor de candidato à reeleição.
Em julgado adotado em 2006, o TSE assim decidiu
“[…] Pleito municipal. Concessão de benefícios a servidores públicos estaduais. Proximidade da eleição. Favorecimento a candidato a prefeito. Abuso do poder político. Ação de investigação judicial eleitoral. Art. 22 da LC nº 64/90. […] Conduta vedada. Art. 73 da Lei nº 9.504/97. […] Candidato não eleito. Abuso do poder. […] III – A concessão de benefícios a servidores públicos estaduais nas proximidades das eleições municipais pode caracterizar abuso do poder político, desde que evidenciada, como na hipótese, a possibilidade de haver reflexos na circunscrição do pleito municipal, diante da coincidência de eleitores. […] V – Não é fator suficiente para desconfigurar o abuso do poder político de que cuida o art. 22 da LC nº 64/90, o fato de o candidato por ele beneficiado não ter sido eleito, pois o que se leva em consideração na caracterização do abuso do poder são suas características e as circunstâncias em que ocorrido. […]” (Ac. de 8.8.2006 no REspe nº 26054, rel. Min. Cesar Asfor Rocha.)
Sob esse prisma, o aumento do auxílio, na forma proposta, e em percentual que ultrapassaria, largamente, a inflação do ano da eleição, poderia ser considerada abusivo e tendente a favorecer o Presidente da República, que é “pré-candidato” à sua reeleição, mas já opera em ritmo de campanha eleitoral, de forma aberta, há meses.
A questão é uma verdadeira “escolha de Sofia”: questionar o aumento implica em impedir a sua concretização, num momento em que os servidores federais já suportam perdas que ultrapassam 35%, em grande parte dos casos, e onde o próprio auxílio-alimentação do Poder Executivo não é corrigido desde 2016 e acha-se em patamar bastante inferior ao dos demais Poderes. Deixar que ocorra como ventilado pelo Governo, porém, implica negligenciar regras de responsabilidade fiscal e política e fragilizar, ainda mais, a própria democracia, e reconhecer como válida a negativa de concessão de revisão geral para todos os servidores ativos, aposentados e pensionistas.
Assim, e ressalvando-se uma vez mais o ineditismo da situação, conclui-se que:
- A concessão de aumento de auxílio-alimentação em 2022 depende de alteração na Lei de Diretrizes Orçamentárias;
- Uma vez superada a proibição da LDO, pode ser concedido aumento de auxílio-alimentação, em 2022, com o aproveitamento de dotações já previstas na LOA 2022, mediante cancelamento e edição de decreto de crédito adicional pelo Presidente da República;
- A elevação da despesa com pessoal é vedada nos últimos 180 dias do mandato presidencial, seja por lei ou ato infralegal;
- Não obstante seja vantagem ou benefício com natureza indenizatória, não extensiva aos aposentados e pensionistas, a elevação da despesa com auxílio-alimentação pode ser caracterizada como aumento da despesa com pessoal, para os fins da Lei de Responsabilidade Fiscal, podendo ser editada lei ou ato normativo com esse fim até o dia 4 de julho de 2022;
- A concessão de reajuste no auxílio-alimentação em percentual a partir de 4 de abril de 2022 que supere a inflação do ano da eleição pode ser caracterizada como abuso de poder econômico, vedado pelo art. 73 da Lei Eleitoral.
- O aumento da despesa com pessoal nos 180 dias finais do mandato presidencial configura crime contra as finanças públicas.
*Luiz Alberto dos Santos é advogado, consultor legislativo do Senado Federal e sócio da Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas