(Nota dos editores: o artigo abaixo é resposta a “O negacionismo nuclear“, publicado pelo professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco, Heitor Scalambrini da Costa, em 21 de janeiro)
Lá pela década de 1960 havia no Rio um escritor e jornalista altamente irreverente, que assinava suas obras como Stanislaw Ponte Preta (seu nome era, na verdade, Sérgio Porto). Resolvido a enveredar pela música, ele escreveu um samba que, pelas normas de liberdade de expressão de hoje, teria de se chamar “Samba do Afrodescendente Desequilibrado”. Na verdade, era uma sátira às novas normas para os enredos das escolas de samba, que tinham agora de se basear exclusivamente em temas e personagens históricos nacionais. O samba conta a história do compositor de uma escola que, pressionado para seguir as novas normas, “endoida” e o resultado é uma letra que fala em JK e na Princesa Leopoldina, diz que Chica da Silva obrigou a Princesa Leopoldina a se casar com Tiradentes e, ao fim, afirma que o Padre Anchieta e D. Pedro proclamaram a escravidão.
Fica-se com a ligeira impressão que o professor Heitor Scalambrini não conseguiu digerir bem as últimas notícias no campo energético, com vários países que haviam congelado seus programas nucleares preparando-se para relançá-los. E com a União Europeia sinalizando que a energia nuclear é “limpa”. Em função dessa “má digestão”, seu artigo, intitulado “O negacionismo nuclear”, tentar incutir na mente do leitor a ideia de que a construção de centrais nucleares no Brasil seria a extensão, para o setor energético, do propalado “negacionismo” do Presidente da República com relação ao enfrentamento da covid-19.
Leia também
Para isso, ele repete os velhos clichês da esquerda sobre a atuação de Bolsonaro na pandemia. É evidente que não adianta repetir que a atuação do governo federal se limitou a distribuir dinheiro com governadores e prefeitos. Nem que os senadores da mais imparcial comissão de inquérito da história nacional resolvessem voltar atrás da acusação de genocídio imposta ao presidente. A partir daí, o professor Scalambrini abre as portas do arsenal de invectivas surradas contra o setor nuclear. Ele, como todos os ativistas antinucleares, citam Fukushima e mesmo Chernobyl como se fossem episódios recentes, querendo transmitir a impressão de que são coisas corriqueiras e não ocorridas há mais de 10 ou 20 anos. Na verdade, eu não sei como ele não se lembrou do acidente de Windscale, que teve lugar em 1957!
Esse é o grande problema dos ativistas antinucleares. Eles vivem numa espécie de distorção do tempo em que tudo evolui, menos os reatores nucleares. Reatores como o de Chernobyl simplesmente não são mais construídos. E os da usina de Fukushima-Daiichi – cujos problemas, sempre é importante frisar, resultaram de um dos mais violentos terremotos já registrados no planeta – estavam no fim de sua vida útil. Se, por acaso, eles fossem ativistas antiaviação, certamente estariam fazendo campanha contra os jatos comerciais com base nos acidentes do Comet – o pioneiro dos jatos comerciais, ainda na década de 1940 – causados por um “design” equivocado das janelas do avião.
Mas o professor Scalambrini, como todo ativista antinuclear que se preze, é obstinado. O resultado é uma sequência de afirmações em prol da opção nuclear que ele atribui aos que militam no setor. Algumas delas são reais, tendo amparo nos fatos e a concordância das agências internacionais, como “o nuclear é seguro” e “a energia nuclear é limpa”. Outras têm potencial para ser classificadas entre a hoje ubíqua “fake news”. Nunca se disse que a “energia nuclear” era “inesgotável, ilimitada” nem que evitaria “apagões”, já que a ausência desses iria depender primordialmente da qualidade das linhas de transmissão e distribuição.
PublicidadeMais sérias são as acusações feitas ao governo federal a respeito de uma suposta “falta de apoio” para a implantação de fontes das tais “renováveis”. Não creio que o professor Scalambrini seja o gênero de pessoa que se proponha a assistir às “lives” e aos pronunciamentos do presidente. Quem assiste, contudo, não irá lembrar-se de um momento sequer em que o mais alto mandatário tenha falado com empolgação sobre a construção de centrais nucleares. O presidente viveu os tempos das grandes construções no Brasil, mormente as grandes hidrelétricas, como Tucuruí e Itaipu. Ele é um entusiasta das tais “renováveis”, acredita que temos um grande potencial hidrelétrico ainda inexplorado e não perde chance de falar no potencial eólico e solar do País.
O texto do professor Scalambrini dá a impressão de ter sido escrito por um ativista antinuclear para ativistas antinucleares. Para usar a frase popular, ele “chove no molhado”. Se – ao menos desta vez – o leitor foi poupado da completamente estapafúrdia relação entre reatores nucleares e armas nucleares (quase, pois há menção a elas no título de um livro que o professor sugere), não o foi com relação a uma verdadeira obsessão por parte dos ativistas: a ideia de que o setor nuclear como um todo esconde as deficiências dos reatores para enfiá-los “de goela abaixo” nos inocentes consumidores. E cada ativista antinuclear, qual paladino da justiça, conhece a fundo os segredos que o setor nuclear oculta a sete chaves e está sempre a postos para impedir que a humanidade incauta pereça nas mãos desses “negacionistas nucleares”.
O professor Scalambrini ostenta em seu currículo um mestrado em Ciências e Tecnologias Nucleares. Assim sendo, deveria ter ciência de que um reator nuclear tem obrigação legal de notificar todo tipo de incidente em suas instalações. Cada notificação dessas é empregada na melhoria dos sistemas do reator. Deveria ter ciência, também, das regras especialmente rigorosas para a escolha do sítio do reator. Fora as intermináveis audiências públicas. Pelo visto, ele tem sérias desconfianças em relação à competência (para usar um termo bem leve) das autoridades de regulação nuclear. A bem da verdade, diga-se que ele militou no campo da energia fotovoltaica (embora ele aparentemente se empenhe mais em torpedear o setor nuclear do que promover o seu). É evidente que a energia fotovoltaica poderá dar uma contribuição importante para as necessidades energéticas da nação, mas somente entre aproximadamente 9 da manhã e 4 da tarde. E é aí que as coisas se complicam.
O Brasil, desde muito tempo, tem patinado, em termos de consumo per capita de energia elétrica, na faixa dos 2.000 a 2.600 kWh anuais. Esse é um número que corresponde a 30% do que consome, em média, um cidadão de um país rico (mais não exatamente uma potência), como a França ou a Alemanha. É bastante óbvio que não se avançará muito no desenvolvimento com um consumo tão pífio como esse. Em outubro de 2006 foi proposto que o Brasil poderia ter, em 2030, o mesmo nível de consumo que Portugal, algo em torno de 4.900 kWh anuais per capita. Resumindo, seria dobrada a oferta de energia elétrica no país.
É evidente que o prazo não será cumprido. Mas, caso se queira, ao menos, chegar a esse número, já se sabe que não será pela exploração continuada do potencial hidrelétrico. Simplesmente há muito pouco ainda por se explorar. A opção eólica também não parece ser prática. Atingir o padrão português significa gerar algo como 500 mil GWh em adição ao que o Brasil já produz. Em 2021, as turbinas eólicas geraram 66 mil GWh, o que implica em multiplicar por 8 o parque eólico atual.
Quanto à energia fotovoltaica, o quadro é ainda mais preocupante. Existe em Gravatá, no Agreste pernambucano, uma instalação fotovoltaica que ocupa uma área de uns bons 4 mil m². Uma placa indica que aquela instalação, que tem uma potência de geração “no pico” (quando o sol estiver na posição mais favorável para a geração, o que dura alguns segundos) de 352 kW e se propõe a gerar 0,046 GWh/mês, ou 0,55 GWh/ano. Assim, bastaria a construção de 82 mil instalações dessas para resolver a questão apenas do ponto de vista numérico de geração (porque ainda existe o problema do fornecimento durante a noite).
E há um aspecto crucial que não pode ser esquecido. Em 2006, não se falava na introdução de automóveis elétricos, nem se dava ênfase ao transporte ferroviário. Essas são duas realidades de 2022. Então, deve-se somar aos cerca de 500 mil novos GWh mais alguns milhares de GWh para suprir essas necessidades.
O que fazer? Sempre existe a opção de manter as coisas do jeito que estão. O que é desaconselhável não apenas do ponto de vista do desenvolvimento econômico, mas também ambiental: a matriz energética ficou mais “suja” nos últimos anos, já que a produção a partir da queima de combustíveis fósseis passou de irrisórios 4% em 2000 para mais de 22% em 2021. Esse é um dado importante: o investimento de algo como R$200 bilhões em turbinas eólicas na década passada pouco alterou o consumo de energia per capita e não evitou o crescimento do uso de combustíveis fósseis. Outra opção é desconsiderar o que pensam os outros países e partir para a construção de novas centrais à base de combustíveis fósseis a qualquer preço, de modo a cumprir a meta prevista para 2030 (mesmo que seja bem depois de 2030). E uma terceira opção envolve a construção de centrais nucleares que, diferentemente do que escreveu o professor Scalambrini, são, sim, limpas, o que atenderia os requisitos ambientais e econômicos.
Por que construir reatores nucleares no Brasil? Eles fazem sentido técnico e econômico, com a vantagem de trazer importantes recursos para a eternamente desfavorecida região Nordeste. E por uma razão muito simples: todas as reservas conhecidas de urânio – o combustível nuclear – do país estão nessa região. Assim, não é exagero afirmar que os que se contrapõem a essa proposta mostram sua falta de compromisso com o progresso do Brasil e, em particular, da região Nordeste.
E por que não construir reatores nucleares no Brasil? O professor Scalambrini faz uso de uma racionalidade surpreendente para argumentar pela eliminação dos reatores nucleares no Brasil e, ao mesmo tempo (como se diz no volleyball), levanta para o adversário cortar: como os reatores respondem por 2,4% da energia gerada no País, ele intui que, da mesma forma que o “Tertuliano, frívolo peralta”, do genial soneto de Artur Azevedo, eles, mortos, não fariam falta. Ora, o número de automóveis elétricos no Brasil – incluídos os híbridos, que também têm motores a combustão – equivale a 1,7% da frota. Pelo argumento do professor Scalambrini, eles não fariam falta, de modo que é melhor parar com essa aventura, não?. A propósito, será que ele sabe que a participação da geração fotovoltaica no Brasil em 2021 foi metade da nuclear?
Enfim, esse novo texto do professor Scalambrini é tão cheio de clichês que, no fundo, é mais do mesmo (o que também é mais um clichê). Desta vez, contudo, ele inovou, pois introduziu temas alheios ao debate nuclear, tentando, por exemplo, aliar o suposto “negacionismo” do presidente Bolsonaro no enfrentamento da pandemia a um suposto apoio dele à construção de mais reatores nucleares no Brasil. Ademais, com o devido respeito, não fica bem a um acadêmico buscar suporte a seus argumentos em dados de ONGs, ao invés de fazer uso das estatísticas oficiais (como ele fez ao tentar “inflar” as mortes em consequência dos raríssimos acidentes nucleares). Fora os leves erros factuais, como a afirmativa de que Portugal “tem criado dificuldades para a expansão de usinas e mesmo abandonando a nucleoeletricidade”. (Um português retrucaria de pronto “Nós nunca criamos essas dificuldades e nunca abandonamos a nucleoeletricidade!” “ Como não?”, alguém questionaria. E o lusitano responderia “Como sim, se nunca tivemos usinas nucleares cá?”)
Ele enxerta em tudo isso menções filosóficas e chega a enveredar pela biologia celular. É por isso – e só por isso – que o texto é um paralelo ao samba criado pelo imortal Stanislaw Ponte Preta há mais de meio século. No fundo, é uma pena que tenha ficado tão longo e sem rimas, pois daria uma ótima letra para um “Samba do Antinuclear Estressado”.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.