Ricardo de João Braga *
A avalanche de crises ocorrida no Brasil após 2013 aproximou a nação da falência nos campos econômico, político e moral. A economia precisa de forte redirecionamento da ação do Estado e sinalização positiva ao setor privado. Na política, as velhas práticas ligadas ao patrimonialismo chegaram ao absurdo, sufocando o cidadão em sucessivos episódios de corrupção. A moral refere-se a um povo dividido, amedrontado, enraivecido e talvez mais pessimista sobre o futuro do Brasil do que em qualquer outro momento da história. O valor simbólico e a capacidade de liderança do presidente da República – autodestruídos pela inabilidade política e as práticas não republicanas dos últimos mandatários – tornam a eleição de 2018 crucial, pois ela permitirá tomarmos novos rumos positivos ou afundarmos ainda mais com a falta de liderança.
Ainda no século 19 alguns pensadores democratas acreditavam na razão como mecanismo de produção do governo. Imaginava-se que a razão tinha importante papel no debate, na avaliação das possibilidades, na busca do bem-comum, e esta nortearia a escolha de um governo. Contudo, ao longo do século 20, tanto mais com o advento da grande mídia, esse estado de coisas se modifica.
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As campanhas tornaram-se espetáculos em que elites políticas disputam o voto do eleitor num “jogo” no qual a comunicação profissional, ao mesmo tempo em que busca “vender” o candidato mais adequado aos anseios populares, também limita as possibilidades de conteúdo e forma de debate. O melhor acoplamento entre a realidade da nação – seus problemas, anseios, valores, ideias – e aquilo que é oferecido ao eleitor por uma campanha/candidato define o vencedor. Em campanhas, assim, discute-se apenas parte das questões públicas (pequena parte, se muito), e os candidatos procuram alinhar-se a algumas poucas ideias definidoras do voto do eleitor. Trata-se muito mais de vender “imagem”.
Na atual corrida presidencial, a liderança do candidato Jair Bolsonaro diz muito sobre essa acoplagem entre a realidade da nação e o que se oferece a ela como candidaturas e propostas. O inaceitável atentado sofrido fortalece o candidato como símbolo, espalha ainda mais sua imagem sobre os eleitores nesta época de campanha. Contudo, avulta um abismo entre campanha, comunicação e um futuro plano de governo. E assim, mesmo sob muitas críticas, Bolsonaro consegue manter fiel seu eleitorado e apresentar-se como candidato competitivo. Por quê?
A partir de entrevistas e manifestações na imprensa, pode-se avaliar que o candidato Bolsonaro parece desconhecer uma série de políticas públicas – sendo que, a respeito daquelas sobre as quais se manifesta, ele o faz de forma insuficiente, avançando para o anedótico, o casuísmo e o radicalismo. Não obstante, isso parece agradar e satisfazer boa parcela do eleitorado. De fato, Bolsonaro mostra-se muito bem situado dentro de um eleitorado de direita e apresenta algumas características que podem expandir sua influência para o centro e viabilizar uma vitória eleitoral.
Partamos dos ataques que Bolsonaro tem enfrentado mais frequentemente. O que se tem visto na mídia é o enfrentamento de Bolsonaro com argumentos de campo ideológico estranho ao seu nicho. O candidato é questionado sobre ditadura, homossexualidade, declarações extremistas. Talvez os interlocutores buscassem constrangê-lo, deixá-lo desconfortável, talvez mesmo fazê-lo recuar, passar insegurança. Contudo, esse tipo de ataque ao candidato, com questões alheias aos seus valores, mostra-se infrutífero, pois Bolsonaro parece ter pisado no acelerador do radicalismo, privilegiando um movimento de fidelização de seu eleitorado de direita. O efeito das perguntas é fazer com que ele se mostre ainda mais Bolsonaro, mais autêntico.
Na campanha, Bolsonaro tem duas “camadas”. A primeira o enraíza no campo político da direita. Trata-se dos valores que ele transmite em palavras, gestos e atitudes. A segunda camada é o que poderíamos chamar a “estética” da sua comunicação, que se encaixa na primeira e com ela interage.
A primeira camada de Bolsonaro consiste no núcleo moralidade-ordem-Deus, e em sua órbita gravitam os sentimentos anti-PT, anti-esquerda e anti-político. Suas falas decorrem dessa matriz, seus argumentos de ataque e defesa.
Moralidade leva aos ataques à corrupção e a sua autoproclamada honestidade. Comunica isso brandindo o exemplo do modesto patrimônio.
Ordem remete à ideia de uma sociedade orgânica, em que cada um tem o lugar de seu merecimento, e assim todos os “homens de bem” estariam melhor do que estão hoje nesta sociedade pervertida e corrompida. Ordem também é hierarquia e disciplina, que reforça o lugar de cada um na sociedade idealizada e traz segurança, estabilidade, conforto. Ter pertencido ao Exército é sua credencial ordeira.
Deus é o seu alinhamento às incursões religiosas, principalmente neopentecostais, na política. Deus é a referência do discurso, que tanto nega a política quanto reforça a distinção entre bons e maus, nós e eles, amigos e inimigos. A frequente referência – de sabor postiço – a Deus é a marca.
O antipetismo e o anti-esquerdismo comunicam a ideia de que “vagabundos” não devem ser sustentados por gente decente. Novamente o valor do “cada um no seu lugar” cumprindo seu dever. É o resgate do cidadão de bem.
O antipolítico refere-se a ser gente decente, que quer o bem do outro e não se dá a esquemas, “picaretagens”, não ludibria. O antipolítico é a outra face da moralidade, um retorno ao mundo sincero do homem de bem.
Somada à forma como o candidato se comunica, discutida em seguida, esse feixe de valores aponta para uma sociedade intolerante, dividida, com ódios aguçados. Entre os radicalismos do “tudo é permitido” e o do “nada pode”, Bolsonaro escolhe o segundo. O equilíbrio de uma sociedade moderada, acolhedora e socialmente justa perde-se, extinguem-se os valores da pluralidade e da tolerância. Vale lembrar que o Brasil possui quase metade de sua população vivendo precariamente, e a solidariedade, o sentimento de união e o respeito humano são aqui valores para um futuro decente, algo que não pode ser descartado.
A segunda camada é a forma de comunicar-se. Bolsonaro pouco responde às perguntas que recebe, não apresenta plano, proposta, não discute questões substantivas. Ele simplesmente verbaliza cenários simples, radicais e acusadores como resposta.
Diante de uma pergunta referente ao papel do governo em promover a igualdade entre homens e mulheres no trabalho, ele aponta o dedo aos entrevistadores e os acusa de aceitar essa prática, tornando-os assim culpados do crime e hipócritas. Comunica-se com a simplicidade de um caso concreto, apresentado como acusação. Nada da pergunta se respondeu, contudo.
Perguntado se era moral receber auxílio-residência tendo imóvel próprio, diz que a prática é legal, e ataca dizendo que o entrevistador recebe seus rendimentos como pessoa jurídica. Novamente o exemplo e a acusação acompanham o vazio de sua posição.
Questionado sobre como atuar na segurança pública, o candidato vai ao caso extremo e embarca numa narrativa de combate nas ruas. Parecemos ouvir as sirenes e sentir na pele a violência prestes a acontecer. Adiante os bandidos com fuzis e armas do Exército, deste lado o agente da lei. O certo é o simples: atacar com um calibre maior, dar mais tiros, usar um tanque de guerra se necessário. Novamente o exemplo radical, e dentro desta radicalidade por vezes avança e questiona o interlocutor: “O que você preferiria, uma lei no bolso ou uma arma na bolsa?”. Da política de segurança pouco se falou, mas ganhou a disputa com o entrevistador.
A comunicação de Bolsonaro encaixa-se muito bem no seu ideário de extrema direita, pois ela é autoritária, agressiva. É o mandar fazer, saber o que é o certo, identificar amigos, inimigos e distribuir recompensas e punições. Diálogo, construção conjunta, cooperação surgem no discurso do candidato de forma anacrônica e solitária apenas quando fala de seu possível futuro ministro da Fazenda.
Para certo público que tende a apoiar Bolsonaro, os valores do candidato e sua forma de comunicação somam-se positivamente. Não há problemas em acusar o interlocutor, pois isso reforça sua mensagem de honestidade, apontando o dedo para os mentirosos. Para o seu público, não importa que o complexo tema da educação tenha sido “explicado” apenas com um exemplo radical. O candidato “lacra”, “mita”, “detona” quando ataca um interlocutor e isso é o mais importante. Ele desmascara as mentiras, deixa o apodrecido sistema nu.
Para esta campanha presidencial, Bolsonaro é um “produto” bastante vendável. Figura midiática moderna, esquematizada, rápida, configura um personagem em ação. Devemos lembrar nossa presença no mundo da alta velocidade da internet, num ambiente onde a agressividade é padrão e também qualidade, que valoriza sobretudo palavras de ordem, imagens de fácil degustação e ideias que se encaixam imediatamente no modelo mental do eleitor. É algo simples, uma relação de empatia que avança para confiança. E nisso Bolsonaro parece estar vencendo.
Contudo, será que a mensagem de Bolsonaro está confinada apenas ao seu nicho de um em cada quatro eleitores? Esta é a pergunta que definirá o vencedor da eleição.
Nesse ponto, entram em questão outras características. Bolsonaro, apesar de profissional da política, diz apresentar-se como o novo, como a negação da velha política. Embora tenha 27 anos de Congresso, o que o qualifica a ser novo é sua autenticidade. Quando pisa no acelerador do radicalismo, ele cria também o subproduto importante da autenticidade. À vontade em suas posições, ele passa ao eleitor uma certeza: fala o que pensa – o que parece realmente verdadeiro. E falar o que pensa é anti-sistema, anti-tudo o que está errado!
Quando fala o que pensa, ele atinge um espectro muito maior de leitores: tudo está errado. Sim, ele se mostra o porta-voz desta crível mensagem: o sistema político está falido, tudo está errado. Nesse momento o seu público pode se expandir para muito além dos valores da direita, pois o cidadão brasileiro sente a falência do sistema político e o rejeita. A mensagem de Bolsonaro pode ir longe nesse devastado campo.
A extensão de seu apoio e a possibilidade de sua vitória revelam o estado da democracia brasileira, tanto o estado de ânimo dos cidadãos quanto a sua cultura de debate público, infelizmente ainda pouco desenvolvida. O eleitor brasileiro mostra-se hoje aberto à negação de tudo, atraído por uma autenticidade construída sobre os valores da agressão, do preconceito e da divisão social. Na democracia o eleitor é soberano, mas este hoje namora uma aposta de alto risco.
Infelizmente, a campanha encerra-se com a escolha de um vencedor, não avança ao menos ao primeiro dia do mandato. Lá a vida real se impõe, os problemas mostram toda a sua força e complexidade e as imagens se dissolvem. De mãos vazias, com ideias mal articuladas e escassas, nosso vencedor eleitoral não saberá o que fazer. Mas pode ser isso, justamente isso, que o eleitor escolheu: uma autenticidade vazia.
* Professor do mestrado profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados. Economista e doutor em Ciência Política.
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