A pandemia de covid-19 que tem atingido milhões de brasileiros que moram nas grandes cidades, causando milhares de mortes, tem atacado até mesmo os guardiões da floresta, que também correm perigo.
Um manifesto dos Munduruku, da Amazônia brasileira, lançado no dia 2 de junho, comunicando e lamentando a morte recente de cinco lideranças, guardiões do conhecimento da etnia, simboliza em grande medida o que vive o Brasil nesta semana do meio ambiente.
“Essas perdas não têm como reparar, esses senhores, que partiram pela doença Covid-19, são guardadores do conhecimento… É como perder uma biblioteca que ensinava a todos” diz o manifesto, que ainda informa, “são mais cinco Munduruku internados em estado grave em Jacareacanga, hospital sem UTI”.
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A grave crise de saúde pública devido ao novo coronavírus, que assola os Munduruku e também o Brasil, com mais de 500 mil infectados e de 30 mil mortes, além da tragédia em si, tem o dom de expor de modo dramático nossa chaga mais profunda: a abissal desigualdade social existente no país; desnudando a imensa precariedade do sistema de saúde, a pobreza extrema, o contingente de 40 milhões de trabalhadores informais, desassistidos de quaisquer políticas sociais e econômicas e as péssimas condições sanitárias das populações das periferias, em sua maioria sem acesso a água, ao saneamento, vivendo em precárias condições de higiene e habitação.
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Exibe a “olho nu” a inadequação da política econômica de auxílio à população necessitada, com enormes dificuldades para acessar o socorro emergencial, e de apoio às pequenas e médias empresas, cuja imensa maioria ainda não conseguiu acessar os empréstimos prometidos a quase dois meses. O que contribui ainda mais para aumentar o drama social e a crise econômica.
Tudo isso agravado por uma atuação errática da presidência da República que em meio à pandemia demitiu dois ministros da Saúde e tem sistematicamente se colocado contra as orientações das autoridades de saúde no Brasil e exterior, causando desorientação em parte da população. Criando tensões com outras esferas de poder, causando crises políticas sucessivas e incentivando manifestações que propõem ruptura institucional e afrontam a democracia. Provocando enorme dispersão de esforços que deveriam estar concentrados no combate à pandemia.
Resultado: o Brasil vive uma perigosa conjunção de crises, sanitária, social, econômica e política que se alimentam mutuamente.
Enquanto isso, o ministro do Meio Ambiente quer aproveitar a situação da calamidade sanitária e uma pretensa desatenção dos veículos de comunicação e da sociedade para “passar a boiada” e acelerar o desmonte do setor ambiental que ele promove desde que assumiu a pasta. Onde já desmontou diversas estruturas, conselhos e até fundos, paralisando recursos, demitindo funcionários de carreira e nomeando “de baciada” policiais despreparados para as funções.
A Amazônia vive uma crise talvez ainda mais dramática dentro do panorama já difícil do Brasil. Desmatadores ilegais, grileiros, madeireiros e garimpeiros intensificam sua atuação com a conivência e a certeza de impunidade, proporcionada pelo governo federal. O resultado não poderia ser pior, recentemente o desmatamento, a invasão de terras e a violência contra grupos indígenas e comunidades tradicionais explodiram.
O desmatamento, que cresceu 30% no período de agosto de 2018 a julho de 2019, chegando à quase 10 mil km2, deverá crescer ainda mais este ano. Os alertas do INPE até abril indicam um crescimento de 94% em relação ao desmatamento verificado entre agosto de 2018 a abril de 2019. A nova taxa anual, segundo estimativas de especialistas, deverá ficar entre 14 e 16 mil km2, uma calamidade ambiental, social econômica para o Brasil.
O novo recorde que se avizinha está junto com o crescimento das queimadas, cujo pico ocorre nos meses de julho, agosto e setembro, quando o já deficiente sistema de saúde na região fica sobrecarregado por causa do grande número de doenças respiratórias. Se somarmos isso ao avanço do covid-19 na região, que também demanda os mesmos equipamentos, a perspectiva é de um cenário de saúde caótico, com graves consequências.
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Há poucos dias o INPE fez um alerta nesse sentido, recomendando a necessidade urgente da intensificação do controle das queimadas e também da pandemia na região.
Para enfrentar essa e outras situações semelhantes nas diferentes regiões do Brasil, os diversos segmentos da sociedade que atuam para reduzir a destruição ambiental e apontar soluções mais inclusivas e sustentáveis e que já vêm trabalhando para contribuir com respostas às crises sanitária e socioeconômica com propostas que indicam novos caminhos que nos desviem da crise das mudanças climáticas, terão que ir “muito além do jardim”, não podendo se furtar de atuar, junto com outros segmentos da sociedade, na defesa intransigente da democracia, nosso bem maior, atualmente ameaçada em nosso país. Sem a qual condenamos ao fracasso todas nossas construções coletivas, o que inclui a sustentabilidade e a redução das desigualdades. Pois a democracia é o espaço onde a sociedade se movimenta para resolver seus conflitos e problemas, que historicamente não são poucos, mas que no momento se tornam ainda mais emergenciais devido à conjunção de crises que vivenciamos.
“Temos que resistir, tentar ser ainda mais fortes”, dizem os Munduruku, “mesmo quando paramos e observamos que tem muitas estradas ou rios para caminhar e que não devemos perder as esperanças”. Da mesma forma, todos nós brasileiros precisamos ser ainda mais fortes e manter nossas esperanças. Fortalecer em nós os sentimentos de paz e união para enfrentar e vencer os graves desafios que nos estão colocados.
*Sérgio Guimarães é secretário-executivo do Grupo de Trabalho (GT) Infraestrutura.
Leia o manifesto Munduruku na íntegra aqui.
MANIFESTO MUNDURUKU
Estamos de luto!
“O rio é nosso tudinho. Vivemos da terra. Da cabeceira até a boca. Então, esse é nosso pensamento, dizer que está fora da área, não está. Está onde nós moramos, nós andamos em todo canto, não é só num lugar não. Então é muito bom vocês ouvirem a gente, nós temos o nosso pensamento, vocês tem o seu. Tem que mostrar também a nossa força, porque estamos no nosso direito, para defender o nosso rio, não pode estragar nosso rio e nossa mata”.
Essa foi a fala do grande Cacique Vicente Saw, da aldeia Sai Cinza que nos deixou no dia 01 de junho com setenta e um anos e com muito conhecimento sobre a defesa de nosso território que o pariwat quer destruir de várias formas. Também nos deixou no dia de hoje (02 de junho), o guerreiro e professor Amâncio Ikon Munduruku, com apenas sessenta anos, uma grande liderança no médio Tapajós, Tio Amâncio inspirava os demais. Está sendo uma das formas de destruição de nosso povo, a morte dos nossos sábios, nossos velhos, nossos conhecedores.
Essas perdas não têm como reparar, esses senhores são guardadores do conhecimento que partiram pela doença covid-19. Perdemos também, Jerônimo Manhuary (86 anos), Angélico Yori (76 anos) e Raimundo Dace (70 anos) para o coronavírus. São cinco Munduruku internados em estado grave em Jacareacanga, hospital sem UTI. Mais um Munduruku do médio que também esta internado. Essa mortandade no nosso povo não começa aqui, mas esse é um momento de luto para todos nós.
Cacique Vicente Saw e nossos sábios descansem em paz. Como dói perder uma liderança admirável, desejamos pêsames para todas as famílias Saw do povo Munduruku, e todo povo. É como perder uma biblioteca que ensinava a todos.
Perdemos um grande líder, grande guerreiro, que lutou muito pelos direitos dos povos indígenas e pelo povo Munduruku, um pai, sempre alegre, mesmo nas dificuldades, como nós Munduruku fazemos. Temos que resistir, tentar ser ainda mais forte, mesmo quando paramos e observamos que tem muitas estrada ou rios para caminhar e que não devemos perder as esperanças.
Que Karosakaybu, nosso criador, o acompanhe para um bom lugar. Vocês, nossos anciões, deixaram legado à resistência Munduruku!!!
Amâncio Ikon Munduruku, Vicente Saw Munduruku, Angélico Yori, Raimundo Dace e Jerônimo Manhuary, Presente!
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