Por Luiz Henrique A. Alochio* e Raphael de Barros Coelho**
“Todo poder emana do povo”, ditame maior da Constituição brasileira e simulacro do emblemático “We the people” da Constituição norte-americana. É o poder que se exerce com a eleição direta de representantes, responsáveis primários pela criação de normas e pela condução da nação. Não coincidentemente, nos dois países, o primeiro poder a se constituir é o Legislativo,[1] responsável direto pela proteção dos direitos individuais.
O Poder Judiciário, por sua vez, chamado de poder moderador ou guardião da Constituição, é o último poder criado dentre os três poderes, sendo responsável por salvaguardar os direitos e as garantias individuais, coibindo os abusos de todos os poderes que porventura violem a própria Constituição.
Fazendo, porém, coro a Rui Barbosa, fica a questão: quem defende a Constituição, quando a própria Suprema Corte a viola?[2] Não se diga que Rui fosse contrário à plena liberdade judicial. Ao revés, é ele o autor das defesas mais célebres da liberdade judicante. A mais famosa peça de defesa, da lavra de sua pena, fora perante o Supremo Tribunal Federal em favor do Juiz Alcides Mendonça de Lima, do Rio Grande do Sul, quando o advogado Rui Barbosa, com maestria, pontificou ser “a consciência da magistratura, difícil de submeter-se à prepotência dos governos”. Cunhou Rui a expressão “Crime de Hermenêutica”[3], e advertia:
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Se o julgador, cuja opinião não condiga com a dos seus julgadores na análise do Direito escrito, incorrer, por essa dissidência, em sanção criminal, a hierarquia judiciária, em vez de ser a garantia da justiça contra os erros individuais dos juízes, pelo sistema dos recursos, ter-se-á convertido, a benefício dos interesses poderosos, em mecanismo de pressão, para substituir a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura, pela ação cominatória do terror, que dissolve o homem em escravo.
Recentemente, temos visto a Suprema Corte Federal se levantar contra supostos atos que atentem contra “as instituições democráticas”, reagindo, de sua parte, com alegada violação constitucional contra “manifestações democráticas” que ousam criticar os eminentes ministros.
PublicidadeAcaba a Suprema Corte rechaçando as críticas, sem possibilidade de admissão ou mesmo de debate de que deliberadamente comete ilegalidades, que invariavelmente afronta os demais poderes e cria situações inconstitucionais, sem fazer mea culpa. Os críticos desse comportamento do STF defendem que os ministros, homens públicos que compõem a mais elevada estrutura estatal, não deveriam se comportar no melhor estilo Luís XIV.
É essencial para nós, brasileiros, colocarmos em discussão a necessidade de os ministros submeterem suas próprias vontades pessoais aos discursos dos quais eles mais discordam. O melhor exemplo vem da Suprema Corte Americana. Antonin Scalla, Justice sabidamente de viés ideológico conservador, votou no célebre caso TEXAS V. JOHNSON, em que se discutia o “direito de queimar a bandeira americana como expressão livre de protesto”.
Disse o ministro que, se dependesse dele, poria na cadeia todo esquisitão de sandálias e barba desgrenhada que queimasse a bandeira americana. Todavia, concluiu: “Mas eu não sou rei”.
O comportamento monárquico, concentrador de poderes, é que se deve evitar numa República. E a cura para o Royalism, que as democracias conhecem, é o impeachment. Mesmo para órgãos do Poder Judiciário.
Pouco estudado no Brasil e mecanismo adequado para o controle de violações da ordem constitucional por parte do Supremo Tribunal Federal, a remoção de ministros que compõem a Suprema Corte do país ou outros juízes de altas cortes já é assunto mais do que batido em outros países, como os Estados Unidos.
Muito embora prevista no art. 52, II da Constituição brasileira, a remoção de ministros do Supremo Tribunal Federal, por só ser possível em crimes de responsabilidade, jamais se efetivou, enquanto, nos Estados Unidos, a remoção de ministros da Suprema Corte é parte fundamental da constituição e da defesa dos direitos individuais, conferindo ao Congresso o poder de remover do cargo qualquer “oficial”, por qualquer tipo de infração legal, de improbidade a crimes hediondos.
Até dezembro de 2019, 66 juízes federais sofreram processo de impeachment. Um caso famoso fora do Justice da Suprema Corte Samuel Chase, com a autorização do impedimento na Câmara dos Deputados, mas não aprovado no Senado.
Já faz alguns anos que o tema tem fervilhado na arena política, ainda que sem o respectivo estudo na Academia. Entre 2008 e 2009, o Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, por conta de duas decisões dele no caso “Daniel Dantas”, decorrente da Operação Satiagraha, da Polícia Federal, fora ameaçado de abertura de impeachment[4].
Mais recentemente, em 2015, deu-se novo protocolo de pedido de impedimento, desta vez contra o ministro Dias Toffoli [5].
O responsável pela denúncia fora o procurador da Fazenda Nacional doutor Matheus Faria Carneiro, que realizou o protocolo na condição de cidadão. O argumento do pedido sinalizava que o ministro teria incorrido em crime de responsabilidade, ao participar de julgamentos em que deveria ter declarado suspeição.
O procurador citou o caso específico do Banco Mercantil, onde Toffoli contraiu empréstimo em 2011. Posteriormente, o ministro teria participado de julgamentos que envolviam o mesmo banco. Em 2016, foi a vez de ameaça ao ministro Marco Aurélio[6]. O MBL (Movimento Brasil Livre) ingressou com o pedido de impedimento do senhor ministro perante o Senado.[7]
A alegação fora a de potencial crime de responsabilidade, em razão da decisão do ministro que determinou o desarquivamento de um pedido de impeachment protocolado na Câmara. Teria o ministro realizado interferência em um ato interna corporis, do presidente da Câmara, supostamente ferindo o princípio da separação dos poderes.
Entre 2019 e 2020, já são quase duas dezenas de expedientes no sítio eletrônico do Senado Federal relacionados ao impedimento de Ministros do STF.[8]
O caso de Impeachment para Ministros do STF tem previsão expressa ainda na Lei 1079/50 (Lei dos Crimes de Responsabilidade).
É fundamental que sejam estudadas, e até mesmo revistas e ampliadas, as hipóteses de impedimento judicial para além do STF, não para o sacrifício da liberdade da jurisdição, mas, sim, para sua conformação à democracia. Não se nega ao Judiciário o fato de não depender da vontade popular, pois os juízes brasileiros não são eleitos.
Acredita-se que, assim, serão os juízes imunes a pressões de ordem política. Falar em impedimento não implica, entretanto, sanções pela prestação de jurisdição. O que não se pode desconhecer é a presença de uma exigência democrática para que todo Poder tenha o exercício de suas prerrogativas, especialmente suas imunidades, não voltadas para a vontade pessoal de seus agentes. O fim maior é o interesse público.
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[1] Basta lermos o Título IV da Constituição, que trata da Organização dos Poderes. O Primeiro a ser organizado é o Poder Legislativo, em seguida o Executivo, e ao término, o Judiciário.
[4] Procuradores pedem impeachment de Gilmar Mendes.
[5] Senado recebe pedido de impeachment do Ministro Dias Toffoli.
[6] MBL pedirá impeachment do Ministro do STF Marco Aurélio.
[7] Brasil livre pede impeachment do Ministro Marco Aurélio
[8] Pedidos
*Luiz Henrique A. Alochio é Advogado e Doutor em Direito (Uerj).
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**Raphael de Barros Coelho é Advogado e LLM. American Law (Florida State University).