Erika Kokay*
Deputadas e deputados, enfermeiras e enfermeiros, auditoras e auditores, marinheiras e marinheiros, presidenta e presidente — são inúmeros os substantivos da língua portuguesa sujeitos à flexão de gênero para designar ocupantes de cargos, empregos e funções públicas ou privadas. Ainda que para alguns pareça um detalhe, o tradicional uso do masculino para generalizar nomes, adjetivos, qualificações e substantivos como um todo é a mostra mais sutil da supremacia masculina que desde sempre se impôs ao feminino.
A flexão de gênero carrega em si a potência de ser um gesto de intervenção cultural com impacto simbólico no imaginário coletivo, ainda tão marcadamente sexista e desigual. É importante destacar que a sociedade brasileira foi forjada sob o sistema patriarcal e tal fato sustenta uma gama de manifestações de violência contra a mulher que assolam o país. Esse imaginário simbólico da cultura machista se assenta sobretudo no campo da linguagem, veiculadora dos sistemas de pensamento.
A linguagem não é algo natural, e sim uma construção social, histórica, e cultural que se modifica de um povo para outro, que se aprende e que se ensina, que forma nossa maneira de pensar e de perceber a realidade, o mundo que nos rodeia. E o mais importante: ela não é inerte e pode e deve ser modificada. É por meio da linguagem que aprendemos a nomear o mundo em função dos valores cultivados na sociedade. A linguagem inclusiva busca contribuir para a concretização da norma que visa à igualdade entre os gêneros, segundo determina a Constituição Federal no seu artigo 5º.
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A prática de generalizar uma profissão, um cargo, uma ocupação a partir de uma única designação de gênero (apenas substantivos masculinos) revela o preconceito contra as mulheres na sociedade brasileira. É negar-lhes o direito de ter o mesmo espaço profissional e intelectual que os homens, é relação de poder e interfere diretamente na construção imagética e cultural para atribuir papéis de gênero que perpetuam as desigualdades e violências contra as mulheres.
Fato é que a língua em si não é sexista, mas é sexista o mau uso que se faz dela, de forma sistemática, no seio da sociedade. Não flexionar o gênero para a titulação de uma profissão, ou a alusão abstrata a cargos e funções promovida pelo emprego do gênero masculino, exclusivamente — seja de forma inconsciente, seja por conta de uma relação social sedimentada no patriarcado —, acaba por promover e disseminar uma cultura de inferiorização e subordinação das mulheres.
É por isso que tenho proposto iniciativas para acabar com algumas distorções. Sou autora de um projeto de lei que obriga a utilização da linguagem inclusiva na administração pública federal em atos normativos, editais e demais documentos oficiais. Se aprovada, a regra valerá para os três Poderes, incluindo órgãos e entidades da administração indireta. Os nomes dos cargos, empregos, funções e outras designações, inclusive patentes, postos e graduações das Forças Armadas, deverão conter a flexão de gênero, de acordo com o sexo ou a identificação de gênero do ocupante ou da ocupante.
Também apresentei o projeto de Resolução de Alteração do Regimento nº 26/2021, para substituir a designação de referência da Câmara dos Deputados por Câmara Federal. Não há outra razão, a não ser o machismo estrutural, que justifique que, em pleno século 21, com as mulheres representando a maioria da população brasileira, a casa ainda seja conhecida como Câmara “dos Deputados”.
Essa medida é simbolicamente relevante para o aprofundamento da experiência democrática por uma composição legítima no Legislativo Federal como diretriz afirmativa para o avanço da participação das mulheres na política, uma vez que desfaz a referência de discriminação ou exclusão de mulheres, chegando a uma designação que indica um lugar para todas e todos.
Outros casos de discriminação estão nas denominações dos documentos oficiais de diversas categorias profissionais. Um exemplo: minha filha concluiu o curso de medicina e recentemente recebeu a sua carteira profissional. Qual não foi sua surpresa ao verificar que nela constava a seguinte informação “Conselho Regional de Medicina — Carteira Profissional Médico”. Como se vê, o documento ignora por completo a diversidade.
Ainda que a profissão tivesse pequena representatividade feminina, a falta dessa flexão já seria uma injustiça com as mulheres. O que dizer então de uma área que passa pela feminização? De acordo com o estudo Demografia Médica 2020, do Conselho Federal de Medicina, os homens representam 53,4% desses profissionais e as mulheres, 46,6%. Trinta anos atrás, em 1990, elas eram 30,8%. Nos grupos mais jovens, as mulheres já são maioria. Na faixa até 29 anos, representam 58,5% e são 55,3% na faixa etária de 30 a 34 anos, segundo o estudo.
Em ofício enviado ao CRM-DF e ao Conselho Federal, sugeri a alteração no sistema de registro das carteiras de identidade profissional. A adoção de linguagem inclusiva de gênero nos documentos oficiais emitidos, em reconhecimento aos avanços e às conquistas dos movimentos em defesa da igualdade de direitos e da equidade no ambiente de trabalho, conferirá tratamento isonômico em um ambiente ainda marcado pela ascensão masculina.
O combate a todas as formas de violência contra a mulher representa uma pauta fundamental para a promoção dos direitos humanos e a garantia de uma sociedade verdadeiramente democrática. O uso da linguagem inclusiva, tornando regra a concordância de gênero, é uma forma válida de lutar contra a desigualdade e significará mais um passo na nossa batalha para diminuir o abismo de direitos entre homens e mulheres no Brasil.
*Erika Kokay é deputada federal pelo PT-DF.
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