Joelson Dias *
Recentemente, um vídeo viral da empresa chinesa Axiobots, uma líder no desenvolvimento de robôs humanoides ultrarrealistas, chamou a atenção nas redes sociais. A Axiobots projeta seus androides para desempenhar funções como cuidados a idosos, recepção empresarial, serviços de guia, educação infantil e entretenimento. Essa tendência reflete um mercado global de robôs móveis autônomos que, segundo projeções, deve atingir 12 bilhões de dólares em 2030, impulsionado pela inteligência artificial. Empresas como Axiobots, Tesla e Unitree estão na vanguarda dessa corrida tecnológica, desenvolvendo robôs cada vez mais inteligentes e capazes.
Este cenário suscita importantes questões éticas e filosóficas relacionadas ao uso de feições humanas em robôs, uma prática cada vez mais comum com o avanço da robótica e da inteligência artificial, e que vai além do aspecto técnico ou estético e toca profundamente em considerações éticas e filosóficas.
A análise de Pierre Dardot e Christian Laval em “A Nova Razão do Mundo: Ensaio sobre a Sociedade Neoliberal” desvenda como o neoliberalismo reconfigura as relações sociais, incitando a competição e a eficiência ao custo das conexões humanas autênticas e da solidariedade. Os autores ilustram a penetração da lógica de mercado em todas as esferas da vida, conduzindo à mercantilização do ser humano e de suas interações sociais, transformando o indivíduo e seus atributos em commodities.
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Ao vincular essa perspectiva crítica ao uso de feições humanas em robôs, emerge um argumento robusto: a atribuição de traços humanos a entidades tecnológicas inadvertidamente fomenta a “coisificação” do ser humano. Essa prática utiliza características intrinsecamente humanas para aumentar a aceitabilidade dos robôs em ambientes sociais, tratando-os como elementos manipuláveis e controláveis, prontos para serem comercializados e otimizados. Esse processo reflete a essência da lógica neoliberal, que busca a maximização do lucro e a eficiência, reduzindo a complexidade humana a meros aspectos que podem ser replicados e vendidos.
Embora Dardot e Laval não abordem especificamente os robôs ou a inteligência artificial em suas obras, os conceitos de mercantilização e coisificação que eles exploram são aplicáveis a essa discussão. Sua análise proporciona uma fundamentação teórica crítica para contestar a humanização superficial de robôs como uma manifestação da tendência mais ampla de mercantilizar e instrumentalizar o ser humano sob o paradigma neoliberal. Essa abordagem não apenas enriquece o entendimento das implicações éticas do design de robôs, mas também situa a questão dentro de um contexto socioeconômico mais amplo, enfatizando a necessidade de uma reflexão ética rigorosa no avanço tecnológico.
PublicidadeIncorporar feições humanas em robôs pode intensificar essa coisificação, criando uma falsa impressão de humanidade que pode ser enganosa e potencialmente perigosa. Estes robôs, apesar de parecerem humanos, não possuem consciência ou emoções, características que são essenciais à condição humana. Portanto, essa prática pode levar à desvalorização do que significa verdadeiramente ser humano, reduzindo a complexidade e a dignidade humanas a simples traços físicos que podem ser replicados.
A análise do artigo “A revolução na medicina em busca da vida eterna”, publicado pela revista Veja em 30 de outubro de 2019, ilustra como os avanços tecnológicos são impulsionados pela mesma lógica de mercado que prioriza o lucro acima de considerações éticas. A reportagem menciona investimentos massivos de gigantes tecnológicos em pesquisas para prolongar a vida humana, uma busca que espelha a tendência neoliberal de transformar todos os aspectos da vida em mercadorias. Este paralelo reforça a crítica ao uso de características humanas em robôs para fins comerciais, ligando-se diretamente ao problema da comercialização do humano.
Importante ressaltar, a atribuição de feições humanas ao robôs não contribui para uma verdadeira humanização das máquinas. Em vez disso, pode resultar em confusão e uma despersonalização, onde as fronteiras entre humanos e máquinas se tornam perigosamente indistintas. Isso se torna relevante especialmente em contextos onde interações humanas autênticas podem ser substituídas por interações artificiais, promovendo uma sociedade onde relacionamentos genuínos são trocados por interações fabricadas.
A reflexão crítica sobre as implicações do uso de feições humanas em robôs é essencial para assegurar um futuro onde a tecnologia serve à humanidade, e não o contrário. Devemos estar vigilantes para que os avanços na robótica e inteligência artificial não se transformem em ferramentas que perpetuem a mercantilização do ser humano, mas que promovam práticas que valorizem a integridade e a dignidade humanas.
Essa conscientização exige um diálogo contínuo entre tecnólogos, filósofos, cientistas sociais e o público em geral para formular políticas e diretrizes que orientem o desenvolvimento tecnológico de forma ética e responsável. É crucial que os debates sobre a integração de feições humanas em robôs considerem não apenas os benefícios técnicos e funcionais, mas também as profundas implicações sociais e éticas dessa prática.
Assim, é imperativo promover uma ética robusta no desenvolvimento tecnológico, respeitando os limites entre humanos e máquinas e preservando a dignidade intrínseca do ser humano. A reflexão crítica sobre as implicações do uso de feições humanas em robôs é essencial para assegurar um futuro onde a tecnologia serve à humanidade, e não o contrário.
Concluindo, a reflexão crítica baseada nos insights de Dardot e Laval nos permite perceber que a humanização de robôs, quando mal orientada, pode contribuir para a desumanização do próprio ser humano. Portanto, ao explorarmos as possibilidades da inteligência artificial e da robótica, devemos fazê-lo com uma consideração cuidadosa de como essas tecnologias afetam as nossas concepções de humanidade e ética, assegurando que elas complementem, e não substituam, a rica complexidade das relações humanas genuínas.
*Joelson Dias, sócio do escritório Barbosa e Dias Advogados Associados, em Brasília, foi ministro substituto do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e é mestre em Direito pela Universidade de Harvard. Representa o Conselho Federal da OAB no Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade).
Referências:
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio sobre a Sociedade Neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
LOPES, Adriana D. A revolução na medicina em busca da vida eterna. VEJA, 2019. Disponível em: https://veja.abril.com.br/saude/a-revolucao-na-medicina-em-busca-da-vida-eterna
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