Patrícia Rossato Nunes e Daniel Telles de Menezes*
Ultrapassada a etapa de admissibilidade da PEC 32/2020 na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, na qual a maioria dos institutos propostos pelo Governo Federal foi considerada compatível com o núcleo super-rígido da Constituição de 1988, passa-se à análise de mérito (conveniência e oportunidade) de sua adoção como norma constitucional.
Entre os temas mais polêmicos está o fim da estabilidade como regra para os cargos públicos, ficando restrita, nos termos da proposição, aos “Cargos Típicos de Estado”, que não define ou elenca remetendo à disciplina pelo legislador ordinário. Os comentadores na imprensa têm buscado defini-los com base na ideia de paralelismo, pelo qual seriam típicos os cargos que não possuem paralelo na iniciativa privada. Pretendemos demonstrar porque que este conceito se mostra impreciso, em especial no caso da Advocacia Pública, e por qual razão ela deve ser considerada típica, apesar do aparente paralelo com a advocacia privada.
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Por trás do projeto de fim da estabilidade dos servidores existem duas ideias. A primeira, apresentada publicamente à população, de que a estabilidade seria um privilégio do servidor cujo efeito direto seria a impossibilidade de demiti-lo por não apresentar resultados esperados e que indiretamente concorreria para sua passividade ou estagnação em um mundo pautado pela inovação, inventividade e apetite pelo risco.
A segunda ideia por trás do projeto de fim da estabilidade é colocada de forma menos transparente pelo governo. Diz-se que seria para dar flexibilidade e agilidade na reorganização dos serviços, permitindo dispensa de servidores cujas funções não sejam mais necessárias e contratação de novos que sejam, não se diz, mas está subentendido, que o modelo permitirá a dispensa de servidores por conveniência financeira, evitando o desgaste do acionamento de mecanismos de responsabilidade fiscal. Simplesmente dispensa-se como “não mais necessário” ainda que para contratar amanhã, para a mesma função, caso a conveniência política e orçamentária se altere. Menos ainda se fala sobre a possibilidade de o fim da estabilidade servir a interesses clientelistas, com trocas discricionárias de contingentes de servidores por outros com objetivo de induzir mudanças ideológicas em órgãos públicos ou favorecer aliados.
A estabilidade, ao contrário do que afirmam seus opositores, não é privilégio do servidor, mas um mecanismo de defesa da sociedade contra o despotismo de governantes e em prol do interesse público. A supremacia deste interesse nos atos do servidor é princípio constitucional e já possui mecanismos de coerção e sanção no nosso direito administrativo, por meio da ação de corregedorias, controladorias, comissões de ética, e atos normativos com força vinculante.
PublicidadeNão é verdade, portanto, que a estabilidade impeça a demissão de servidores ímprobos ou ineficientes (prevista na Lei 8112/90). Tampouco há comprovação científica de que a estabilidade determine a passividade ou estagnação dos servidores. Aliás, há sérias controvérsias na administração privada quanto à eficiência da ameaça de dispensa para os resultados do trabalho dos empregados, isto é, boas empresas, com gestões de pessoa modernas, não conquistam engajamento de bons funcionários ameaçando demiti-los.
De igual sorte, não é verdadeiro que a estabilidade impeça o remanejamento de servidores que desempenham tarefas que não são mais necessárias para outras carências que surgem a cada dia. A lei 8112/90 já prevê as figuras da disponibilidade, quando o cargo ocupado é declarado desnecessário e o aproveitamento quando o servidor em disponibilidade é realocado em outro cargo com atribuições e vencimentos compatíveis.
Restam, portanto, as razões – pouco republicanas – de subordinar o vínculo do serviço às conveniências orçamentárias, ou de sujeitá-lo a preferências clientelistas. Nos dois casos quem perde é a sociedade. A ocorrência de ciclos de contratação e demissão por razões fiscais representa um custo financeiro e para a qualidade do serviço. O processo de seleção de servidores não é gratuito, sendo necessária a prática de uma série de atos que custam dinheiro.
Além disso, os novos servidores precisam ser treinados até que estejam totalmente familiarizados com o desempenho de suas atribuições o que implica custos de treinamento e necessidade estrutura alternativa para manter a regularidade do serviço enquanto isto ocorre. Ademais, a troca constante de servidores representa perda de memória institucional, que produz ineficiência e potencialmente erros que seriam evitáveis. Finalmente, a precarização de vínculos para que se sujeitem a preferências ideológicas ou clientelistas afronta gravemente a noção de Estado Republicano, no qual o interesse público não se confunde com os do governante de ocasião.
Portanto, em uma primeira análise, o novo instituto (vínculo com prazo indeterminado, sem estabilidade) não se compatibiliza com princípios fundamentais do texto constitucional como o princípio republicano, que apesar de não constar como cláusula pétrea explícita, pode ser assim considerado tendo em vista sua confirmação por plebiscito digno de nota que tampouco a democracia consta no rol do artigo 60, §4º, da Constituição apesar de ser princípio fundante do Estado, estabelecido no artigo 1º do texto, tal como a República e o Estado de direito, igualmente ausentes no artigo 60.
Assim vistas as coisas, a estabilidade não poderia ser suprimida ou, quando muito, poderia ser limitada naqueles casos em que o cargo não enfeixe poderes e atribuições essenciais à existência do Estado em sua forma, republicana, democrática, de direito (art. 1º), e ao atingimento de seus objetivos fundamentais (art. 3º). Neste contexto, se evidencia a inexistência de paralelo entre a advocacia pública e a privada, em que pese a semelhança do primeiro termo.
Se por um lado existem semelhanças entre as atividades de assessoramento jurídico na esfera pública a privada, a Advocacia Pública, ao contrário da sua correspondente na esfera privada, tem participação determinante no ciclo de controle interno dos atos administrativos, que vão desde a consultoria em matéria de licitações e contratos até o controle de legalidade na inscrição de créditos em dívida ativa.
Outra diferença fundamental reside no fato de que os advogados públicos, ao contrário dos privados, não têm um cliente corpóreo que lhes diga exatamente o que quer ou não quer que seja defendido ou pleiteado em juízo. Esta é uma particularidade imensa porque significa dizer que estes advogados públicos defendem em juízo interesses que ao mesmo tempo precisam ser extraídos da lei mediante atividade hermenêutica.
Dito de outro modo, enquanto o advogado privado precisa interpretar a lei para defender o interesse posto por seu cliente, o público deve fazê-lo duas vezes, primeiro para identificar o interesse público na lei e depois para defendê-lo. Não há fins predispostos à sua frente, e ele há de encontrá-los, antes mesmo de defendê-los. Quando assim faz, o Advogado Público corporifica o interesse público para então sustentá-lo em juízo, ou seja, é ao mesmo tempo o Estado e seu defensor. O advogado privado, salvo o que advoga em causa própria, jamais se confunde com seu cliente enquanto o advogado público é o estado em causa, torna-se a sua voz e manifesta seu interesse.
Este processo, é deveras mais complexo e implica maiores responsabilidades. Enquanto o advogado privado só pode ser responsabilizado quanto à técnica empregada na defesa de seu cliente, os pares públicos podem ser questionados quanto à interpretação que fizerem de qual seja o interesse público no caso concreto. Neste sentido, à medida que a gestão pública adota modelos privados e horizontais de solução de conflitos como a mediação, a transação, os convênios e compromissos, mais intensa e frequente se torna a atividade do advogado púbico de presentar, e não só representar, o interesse público nas relações jurídicas.
O poder-dever de presentar o interesse público não encontra paralelo no setor privado porque não se confunde com a mera representação ou aconselhamento e seu exercício demanda responsabilidade e autonomia que só podem existir com segurança jurídica. De um lado é necessário que esta atuação tenha procedimentos que garantam a sindicabilidade do interesse público manifestado, tais como transparência e dever de fundamentação legal coerente.
Do mesmo modo é preciso que haja controles de ética e integridade, como relatórios gerenciais de monitoramento de atividades, procedimentos de revisão aleatórios, entre outros que já existem. Aliás, é bom que se diga que são raríssimos os casos de desvio finalidade ou corrupção na Advocacia Pública.
Por outro lado, este poder-dever precisa ter suas garantias contra influências espúrias. É fundamental que o Advogado Público que o exerce não se sujeite à pressão de interesses outros que não aqueles que emanam da lei e dos procedimentos legais que estruturam seu órgão de atuação e a pior dentre as pressões a que pode estar sujeito é o risco de demissão por divergência de interpretação ou mudança de critérios hermenêuticos.
Outros autores já chegaram às mesmas conclusões aqui defendidas. DI PIETRO nos ensina que “a advocacia pública, no exercício de suas atribuições constitucionais, não atua em defesa do aparelhamento estatal ou dos órgãos governamentais, mas em defesa do Estado, pois este é que titulariza o interesse público primário”.
Já o saudoso professor Diogo de Figueiredo anota que a Advocacia Pública é responsável não apenas pela representação em juízo do interesse público, mas “pelo exercício do poder público indispensável para zelar, acautelar e promover importantes interesses públicos, difusos, coletivos e até individuais, nas múltiplas relações intrassociais, entre sociedade e Estrado e intraestatais”.
Para Diógenes de Sousa Silva, “deve ser prestigiada a defesa intransigente da liberdade e da independência do Advogado Público” pois, “[c]alar o advogado no exercício regular de suas atribuições legais, equivale a censurar ditatorialmente um sem-número de vozes, que só tem vez com a percuciente atuação do Advogado Público.”
Até mesmo o STF, na ADI 4843 asseverou que seria inconstitucional a emenda à Constituição que outorgasse o exercício da Advocacia de Estado a exercente de cargo em comissão estranho aos seus quadros, uma vez que a relevância das funções desempenhadas impõe que as atribuições sejam exercidas “por agente público investido, em caráter efetivo, na forma estabelecida pelo art. 132 da Lei Fundamental da República, em ordem a que possa agir com independência e sem temor de ser exonerado “ad libitum” pelo Chefe do Poder Executivo.
Diante disto, é forçoso concluir que o regime de vínculo por prazo indeterminado sem estabilidade é incompatível com os princípios fundamentais do Estado Brasileiro insculpidos na Constituição, quando menos no que se refere à sua aplicação a cargos que enfeixam poderes públicos, sendo flagrantemente inconstitucional por afronta a tais princípios e ao pressuposto do Estado Democrático de Direito sua aplicação à Advocacia Pública à guisa de paralelismo com o setor privado.
Pode-se ainda apontar a inconstitucionalidade do instituto por violação ao postulado da proporcionalidade uma vez que não há relação de adequação entre o modelo proposto e os fins declarados, muito menos necessidade de adotá-lo, já existindo institutos jurídicos aptos ao atingimento destes.
Por fim, não se mostra conveniente nem oportuna a fragilização do vínculo entre os Advogados Públicos e o serviço ao qual se vinculam, uma vez que fazem parte de um sistema de manifestação e controle do interesse público que, despido da prerrogativa da estabilidade, pode ser suplantado por interesses pouco republicanos na forma de ameaças e substituições ad libitum.
*Patrícia Rossato Nunes é procuradora federal, especialista em Advocacia de Estado e Direito Público pela UFRGS; Daniel Telles de Menezes é procurador da Fazenda Nacional, Mestre em Políticas Públicas pela UFABC.
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