De apagão em apagão o Brasil chegará em novembro de 2022 em plena escuridão estatística. Não se trata mais de uma situação isolada, de um caso aqui outro ali. O novo governo assumirá um país em voo cego. Já não sabemos mais onde estamos. As bússolas, os sinais vitais, os bancos de dados setoriais e os sistemas estruturantes do governo caminham para um inevitável colapso sistêmico. As organizações públicas estão em risco. Várias já estão funcionando de forma manietada e avariadas. No momento em que a transformação digital explode globalmente e que “big data” se torna o centro da agenda de desenvolvimento, o Brasil abandona sua infraestrutura de dados.
No primeiro ano do governo atual, o presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) foi desacreditado, atacado publicamente e retirado de seu cargo por mostrar os dados de desmatamento e queimadas. Os constantes ataques ao IBGE levaram a cortes orçamentários e interferências políticas relacionadas a critérios para coleta de dados. No MEC, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) vem passando por uma rotatividade sem precedentes. Denúncias de assédio e má gestão se multiplicaram. A politização do Enemagrava as dificuldades. A área da Saúde teve quatro ministros, em menos de três anos.
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O Brasil proporcionou um exemplo admirável de resiliência cívica. A sociedade e burocracias de Estado foram capazes de, a duras penas, produzir estatísticas essenciais a respeito de uma pandemia letal, que já produziu mais de 620 mil mortes. Instituições como a Fiocruz e a Anvisa têm funcionado em marcha forçada para cumprirem seus papéis institucionais, a despeito de um governo negacionista
O que estes vários casos têm em comum? Uma tentativa de desqualificação de organizações que têm como missão produzir informações, análises e avaliações sobre temas sociais e econômicos, baseadas em fundamentos técnicos e que podem contrariar interesses políticos. Os limites entre a técnica e a política são bastante tênues. Se a técnica se sobrepuser sempre à política, teremos uma tecnocracia autoritária. Se a política não respeita, não valoriza a técnica e toma decisões discricionárias, também pode afetar a qualidade das entregas da democracia.
Hoje a política ataca as instituições técnicas, buscando subjugá-las aos interesses e conveniência do governo do dia. A desmoralização da Lei de Acesso à Informação pelo governo e a recente decisão do Congresso de ocultar a alocação de recursos de emendas que lubrificam a política de sustentação da base parlamentar do governo são tristes sinais de retrocessos graves no que se refere à transparência do gasto público.
Somam-se a eles desafios como a cyber segurança, no qual o componente tecnológico tem um peso muito grande. Os ataques ao Ministério da Saúde e ao Tesouro Nacional mostram como o país é vulnerável. As infraestruturas de dados são a espinha dorsal das políticas públicas orientadas para as agendas de desenvolvimento nacionais. Destrui-las e/ou desabilitá-las por não refletirem a autoimagem de governantes é um suicídio nacional. Se nem governo nem sociedade sabem o que se passa de fato no país, o resultado é a desmoralização da política e as atenções se deslocam para pautas dissociadas das necessidades do interesse público.
Há atividades que não podem e não devem ser alteradas pelo governo de plantão. Isto não significa que sejam impermeáveis a mudanças. Quer dizer apenas que mudam a partir de parâmetros que se situam no plano da técnica, não da política, e que sua alteração demanda mexer em protocolos e rotinas com regras de transição. Possuem especificidades que se vinculam a outras dimensões como a da ciência, a da educação, a da saúde etc. Devem ser sujeitas a permanente escrutínio social porque precisam atender à sociedade, terem asseguradas suas continuidades e, ao mesmo tempo, estar sujeitas a mudanças políticas.
Este é um tema urgente para nosso futuro: equacionar o direito de o governo eleito imprimir sua orientação às instituições governamentais e ao mesmo tempo resguardar estas instituições das interferências políticas indevidas. Além disso, é preciso assegurar mecanismos de transparência e de responsabilização social – além dos controles interno e externo previstos legalmente.
Desde a cacofonia organizacional instalada pela Constituição de 1988, o debate em torno dos modelos organizacionais desejáveis para o bom funcionamento do setor público não tem sido travado à luz do dia – apenas nos impenetráveis labirintos do establishment jurídico. Há confusão no debate sobre a autonomia administrativa-financeira que inclui instituições como Banco Central, Polícia Federal, universidades públicas, agências reguladoras e outros.
O governo que assumir a reconstrução do país em 2023 precisará fazer este debate sobre a governança das instituições públicas brasileiras. É inescapável. Dado o grau de esfacelamento da Administração Pública Federal que encontrará, é importante que desde agora comece a elaborar propostas para mudar o estado das coisas. O Brasil precisa de um Estado que funcione. Já.
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