Luiz H. A. Alochio *
Escrever sobre orçamento pode gerar um texto enfadonho, pois é um tema árido, técnico e que não permite aventuras. O momento atual exige alguma explicação a respeito da recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o “orçamento secreto”. Por isso, inicio citando um jurista brasileiro, que por ser genial escreve de forma muito simples, fugindo do hermetismo natural do chamado Direito Financeiro”. O desembargador Marcus Abraham trata do tema.
“Há 160 anos, o então Reino da Prússia, que veio a se tornar o principal Estado-membro do império alemão, se via às voltas com a necessidade de aumentar os gastos bélicos para fazer frente às guerras que enfrentava.
Tal situação instaurou um “impasse orçamentário” nos anos de 1860-1866, entre o Poder Executivo e o Parlamento, que rejeitava sucessivamente o aumento das despesas.
Sob o comando do chanceler Otto von Bismarck, o conflito político é transferido para a arena jurídica, através da construção dogmática do jurista Paul Laband, do orçamento público como “lei meramente formal”, mitigando o seu caráter de lei material. Esvaziava-se, então, o perfil impositivo do orçamento, ao argumento de tratar-se de mero ato administrativo de autorização de gastos, e validaram-se juridicamente os ideais do princípio monárquico prussiano, garantindo a soberania do monarca autoritário em detrimento do Parlamento.”
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A história já conhece, portanto, a discussão lei formal (não impositiva) x lei material (ou impositiva) há mais de um século e meio. Vejam que esvaziar qualquer caráter “impositivo”, alerta Abraham, valida um ideal monárquico, com uma soberania absoluta contra o Parlamento.
PublicidadeFalar de orçamento “impositivo” virou um tabu! E, para piorar, com a confusão recente, a partir da modelagem jurídica e da nomenclatura terrível que adotaram (“orçamento secreto”), caiu na visão popular como algo extremamente nefasto. Algo a ser demonizado!
Vamos trazer uma visão menos terrível das regras orçamentárias impositivas. Não quero defender que tudo no orçamento deva ser impositivo, pois há muito o que não poderá sequer ser alcançado, por ser uma lei de planejamento. Não se pode, todavia, menosprezar que é, sim, constitucional e legitimamente possível falar em algum limite de respeito às emendas parlamentares. O que importa é definir “como se deve fazer” para isso não se converter numa prática obscura, secreta, e que simplesmente tire os parlamentares do “desrespeito do Poder Executivo” para simplesmente colocá-los “nas mãos” dos líderes partidários ou dos relatores do orçamento.
Reafirmo que é preciso escrever saindo dos termos técnicos, para que o maior número de pessoas possa compreender o texto. Peço licença, por esse motivo, para tratar desse tema complexo de forma mais simplificada: o orçamento, as emendas impositivas e o chamado “orçamento impositivo”, que descambou para o “orçamento secreto” (ou emendas de relator).
No Direito Financeiro ou no Direito Orçamentário, orçamento pode ser visto como uma lei de planejamento financeiro para um período futuro (seja o planejamento anual ou o planejamento plurianual), sendo que se estima uma receita e se fixa um limite de despesa. Vejamos, então:
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- a) Primeiro ponto: é uma lei de planejamento. Precisa ser “planejado” para que não ocorra desperdício de dinheiro público, para que não se gaste além do que se tem e para que obras e serviços necessários não deixem de ser realizados quando há dinheiro disponível.
- b) Segundo ponto: a receita é meramente estimada, pois não se sabe ao certo se haverá toda a arrecadação prevista. A arrecadação pode ser menor, e assim a lei orçamentária vai tendo sua execução restringida ao longo do período. É possível também que a arrecadação seja até maior do que o previsto, caso em que podem ocorrer “suplementações” para aumentar a despesa, adequando-o ao superávit de arrecadação.
- c) Por fim, a lei de orçamento limita a despesa àquele valor originalmente estimado. Como visto acima, se a arrecadação for maior que o estimado, basta fazer uma “suplementação”. Se for menor, será necessário conter despesas.
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No meio do caminho do processo de criação das leis de orçamento, entram as emendas parlamentares. O Poder Executivo não tinha obrigação de respeitar as emendas do Parlamento. Em 2013, porém, foi proposta a PEC 358/2013, convertida na Emenda 86/2015. A ideia era razoável: separar um percentual do projeto de lei orçamentária para as emendas individuais dos parlamentares. No texto original, cada emenda individual poderia atingir um percentual da receita corrente líquida prevista no projeto encaminhado pelo Poder Executivo. Pelo menos a metade do valor de cada emenda deveria ser destinada a ações e serviços públicos de saúde. Cada parlamentar podia apresentar emendas no valor de até R$ 10 milhões, sendo no mínimo R$ 5 milhões destinados à saúde.
Na verdade, essa modalidade de “orçamento impositivo” seria mais corretamente denominada como “emendas individuais impositivas”, pois não será todo o orçamento que ficará “impositivo”.
Falar em execução impositiva de uma lei ou de parte de uma lei orçamentária pode parecer estranho, afinal, como visto acima, “orçamento estima receita” e não se sabe quanto dinheiro efetivamente terá o governo para gastar.
É preciso lembrar que a própria Constituição reconhece técnicas de “imposição orçamentária”:
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
[…]
2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre:
I – no caso da União, a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15% (quinze por cento);
II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios;
III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.
No caso da União, 15% da receita corrente líquida de um exercício financeiro é “impositivamente vinculada” aos serviços de saúde. A execução das emendas parlamentares na parcela destinada à Saúde, por exemplo, já poderia estar aqui considerada.
Vai um adendo a respeito da saúde: ainda que se aumente a despesa com saúde pública, precisamos verificar a despesa pública com o Sistema Único de Saúde (SUS). O Brasil gasta 9,5% do PIB com serviços de saúde. Apenas 3,96% são gastos do governo com a saúde pública, sendo o restante gastos privados, como de planos ou seguros de saúde. O SUS bem poderia já estar recebendo 4,7% do PIB, previsto para 2030, o que poderia ser incrementado com uma melhor arquitetura das “emendas parlamentares impositivas” destinadas à saúde. Novamente: é apenas uma questão de melhorar o sistema.
Um parlamentar que conhece sua base de atuação saberá, seguramente, onde “o calo aperta”. Saberá onde precisa de uma escola, uma reforma de unidade de saúde, uma ambulância, máquinas para corrigir as estradas vicinais que ligam aquele município às rodovias e situações afins. Ao querido leitor no conforto de uma metrópole, ou de uma grande cidade, isso pode parecer “clientelismo”. Lógico: já terá grande maioria dos serviços públicos à disposição, vindos até de emendas parlamentares. Para a população que majoritariamente necessita da atenção mais direta de seus representantes eleitos para algumas melhorias essenciais — uma verba para extensão de uma rede de esgoto, por exemplo —, as emendas parlamentares são capazes de ocupar uma função extremamente relevante.
A Política, todavia, tem sido criminalizada. Os órgãos de controle têm avançado sobre as decisões no orçamento. Ao final, é o voto do eleitor que perde valor. Dizer que a política está sendo criminalizada não é tentar proteger “político corrupto”. Veja que escrevemos “Política” (com “P” maiúsculo), tentando pelo menos distingui-la das artimanhas, das jogatinas e dos malfeitos. A criminalização da Política atinge as decisões administrativas do dia a dia. O gestor tem, inclusive, receio de “decidir”. Caro leitor, acredite: nenhuma decisão de gestão terá uma exclusiva opção.
É antiga a frase “o Direito não é ciência exata”, tendo mais de uma teoria ou interpretação a respeito da mesma lei. O fato de o gestor — eleito — escolher uma, dentre duas ou mais interpretações legítimas, não pode ser visto como crime ou improbidade. Todavia, ao longo das últimas décadas temos visto a criminalização da Política, o que acarretou aquilo que ficou conhecido como o “apagão das canetas”. Gestores estão deixando de agir. Imagine a possibilidade de uma atuação inovadora. Toda inovação atrai a análise de risco. E risco tem duas faces: o risco de “fortuna” e o risco de “ruína”. No popular, pode dar certo ou pode dar errado. Nem sempre o “dar errado” deveria ser alvo de uma punição. Lógico: não estamos aqui isentando os casos de erros crassos, erros de cálculo em obras que viram ruína e situações afins.
Há, ainda, um problema adicional: uma boa ideia pode ser apropriada, deteriorada e se transformar em uma ilegalidade. O orçamento “impositivo” e as “emendas parlamentares impositivas”, cederam lugar a um instrumento tenebroso, o chamado “orçamento secreto” e as “emendas de relator”. Há poucos dias, o Supremo Tribunal decidiu pela Inconstitucionalidade na forma das ações de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs) nº 850,851, 854 e 1014.
O Juiz Brandeis, da Suprema Corte Americana, tem uma frase espetacular: “o melhor alvejante é a luz do sol”. Por isso, o Brasil deveria retornar o orçamento àquilo que o constituinte originário pretendeu ou, quando muito, à ideia de “emendas parlamentares individuais de execução impositiva”. Nesse último caso, sendo eleito um percentual da receita corrente líquida do orçamento, para efeitos de emendas de parlamentares, com no mínimo metade desses valores destinada aos serviços públicos de saúde. Um sistema de emendas parlamentares com plena publicidade e sem intermediários. E o mais importante: que haja regra de execução orçamentária mandatória dessas emendas — assim como são compulsórias as execuções de percentuais de saúde e educação.
A emenda individual de cada parlamentar não pode ser menosprezada pelo Poder Executivo, o que seria a tendência absolutista, monárquica e demonstraria a supremacia do Executivo sobre o Legislativo, denunciada no texto do professor Abraham. Também não seria avanço algum o parlamentar individual ficar à mercê de um intermediário, seja o relator do orçamento ou presidente de qualquer das casas do Congresso. Tal opção seria igualmente “absolutista”, só trocando quem irá se impor contra o parlamentar individual.
Valorizar a atuação fundamental dos parlamentares, de cada parlamentar, é plenamente possível e, até mesmo, desejável. E não é necessário sacrificar a publicidade ou a lisura. Se a ideia do orçamento impositivo envolver um percentual razoável e uma base de cálculo factível (como é a receita corrente líquida), servirá para valorizar — ao final — o voto do eleitor da base eleitoral de cada parlamentar.
Reiterando: ninguém sabe mais a necessidade imediata do povo do que os representantes parlamentares. Muitas vezes, nem mesmo o Poder Executivo saberá com tanta precisão. E, seguramente, não saberão o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria e outros agentes públicos não eleitos.
* Pesquisador visitante da Faculdade de Direito da Florida State University (FSU, College of Law), é doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e procurador municipal da Prefeitura de Vitória (ES).