Bráulio Santiago Cerqueira *
No futuro próximo, lê-se em todo lugar, o envelhecimento da população reduzirá drasticamente o número de trabalhadores necessário ao sustento dos aposentados. No presente, repete-se insistentemente, o volume elevado das despesas previdenciárias e seu aumento em relação ao PIB, num contexto de austeridade fiscal, nos deixam sem saída: é desejável e é preciso reformar para, essencialmente, gastar menos.
A proposta de reforma da previdência (PEC 6/2019) apresentada pelo novo governo ao Congresso, assim como sua antecessora, tomaram essa narrativa como ponto de partida para proporem mudanças significativas na previdência social em três direções principais: endurecimento das regras de acesso à aposentadoria, redução do valor dos benefícios e, a novidade agora, individualização de riscos com a capitalização.
À economia projetada de R$ 1,2 trilhão em dez anos, decorrente essencialmente da redução do gasto previdenciário, seguir-se-ia a recuperação da confiança e o aumento do crescimento no longo prazo (Carlos Langoni, Folha de S.Paulo, 12/02/2019). Aqui percebemos ecos da velha “teoria do bolo”, do mesmo professor Langoni, abraçada pelo regime militar nos anos 1970: primeiro crescer para depois distribuir; em tempos atuais, excluir via interrupção/redução das transferências, para na sequência crescer.
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Há, no entanto, pelo menos dois graves problemas nesta narrativa e nas propostas que dela decorrem (Blyth, 2013): primeiro, não correspondem inteiramente aos fatos; segundo, não funcionam.
Desde 1988 até hoje, mudanças na expectativa de vida da população, nas taxas de fecundidade e na dinâmica do mercado de trabalho ensejaram inúmeras alterações na previdência social, constitucionais e infraconstitucionais, legais e administrativas, responsáveis por: no Regime Geral, a) ampliação da cobertura, b) aumento da base de contribuintes, dentre outros microempreendedores individuais, c) e aumento da idade média de aposentação; e no serviço público d) fim da paridade e integralidade, e) introdução da contribuição para inativos, f) teto de aposentadoria igual ao da iniciativa privada, g) e adoção da previdência complementar.
Enquanto isso, as necessidades de financiamento do Regime Geral, que em 2006 chegaram a 1,7% do PIB, caíram para 1,0% em 2014 (Resultado do Tesouro, STN). No Regime Próprio Civil Federal, a queda no período foi de 0,8% do PIB para 0,6% (RREO, STN).
O que, então, ocorreu depois de 2014? As despesas com benefícios continuaram a crescer, 4,0% a.a. em termos reais, uma taxa menor do que a média do período 1998-2014, de 6,7% a.a. Mas a receitas previdenciárias, influenciadas pela gravidade da recessão, apresentaram comportamento absolutamente anômalo, despencando em termos reais 2,3% a.a., contra uma alta média de 6,1% a.a. entre 1998 e 2014 (Resultado do Tesouro, STN). Com isso, as necessidades de financiamento do Regime Geral saltaram para 2,8% do PIB em 2018, e as do Regime Próprio Civil Federal subiram para 0,7%, também devido, neste caso, à implementação da previdência complementar do servidor que retira receitas do Regime Próprio.
Em suma, de um ponto de vista estritamente orçamentário – e a previdência social é muito mais do que isso, trata-se do centro nevrálgico do sistema de proteção social brasileiro –, o foco da narrativa em torno de trajetória insustentável das despesas desconsidera por completo a evolução do sistema e a singularidade do momento atual de perda de dinâmica econômica e de receita.
Outro exemplo de miopia do discurso oficial diz respeito aos efeitos do envelhecimento da população sobre o esforço econômico para pagar aposentadorias. Isso é ilustrado em publicação recente do Insper, onde se afirma que em “1980 eram pouco mais de 9 pessoas entre 15 e 59 anos por idoso (mais de 60 anos)…atualmente, são cerca de 5…em 2060 1,6.” Sonega-se aí uma informação crucial: que a razão de dependência precisa considerar a outra parcela inativa da sociedade, os jovens. O quadro que daí emerge é bem distinto do apocalipse econômico-etário traçado pelo governo: em 2047 a razão de dependência entre, de um lado, jovens com menos de 15 anos e idosos com 65 anos ou mais e, de outro lado, população em idade ativa, seria exatamente a mesma observada em 2000 (IBGE, 2013).
E o crescimento econômico, acompanharia a economia de R$ 1,2 trilhão em dez anos prometida pela reforma da previdência? Desde fins de 2014 a política econômica vem sendo pautada pela austeridade, isto é, a compressão de gasto público social e de investimento, tornada obrigatória por duas décadas após a introdução do teto de despesa em 2017. E quais os efeitos desta escolha política sobre o crescimento, emprego, salários, distribuição? Em 2015 e 2016, a desaceleração econômica de 2014 transformou-se numa das piores recessões da história, também explicada pela alta dos juros, choque de tarifas e corte de crédito. Na sequência, a retomada veio em ritmo lento com permanência de elevado desemprego. Atualmente as expectativas de mercado apontam que somente em 2020 o PIB brasileiro voltará ao patamar de 2014, configurando a pior recuperação econômica da história já registrada pelo IBGE. Em simultâneo à elevada desocupação, a precarização do mercado de trabalho aumentou (Pnad, IBGE), enquanto o país se encontra no limiar da volta ao Mapa da Fome da ONU.
Num quadro como esse, exigir para aposentadoria, como na PEC 6/2019, 20 anos de tempo de contribuição com idades mínimas de 62 (mulheres) e 65 (homens) anos, agravará a situação: estima-se, somente no universo urbano do Regime Geral, que 39% das trabalhadoras e 18% dos trabalhadores não conseguirão se aposentar (Mostava & Theodoro, 2017).
Já a proposta de capitalização, a ser implementada por Lei Complementar, rompe com a solidariedade e subtrai receitas do sistema atual, que hoje arrecada R$ 425 bilhões considerando o Regime Geral e dos servidores civis federais. Suponha-se que 5% desse valor passe à capitalização em contas individuais. Seriam R$ 21 bilhões anuais engordando fundos de previdência. Em 10 anos, R$ 1,2 trilhão girando no mercado financeiro, que administrados a 2% renderiam R$ 23 bilhões aos bancos e gestores de fundos. De um lado, mais lucros de instituições financeiras, de outro, menos receitas (210 bilhões em 10 anos) e mais fragilidade na seguridade social.
No meio de discussões parciais e da promessa de redenção após nova rodada de sacrifícios da população, termina-se por deixar de lado o essencial. O problema não está no valor médio de R$ 1230 mensais dos benefícios do Regime Geral, que pela nova regra de cálculo proposta cairá para próximo do salário mínimo; nem no Regime Próprio Civil Federal, com necessidades de financiamento tendendo a zero no longo prazo, e mesmo assim alvo de duro ajuste com redução de benefícios que podem chegar a 50%; já Estados e Municípios apresentam heterogeneidade de situações, mas marcadas, de novo, pelo colapso de arrecadação. O problema não está no tamanho e no desenho do sistema de proteção social, que sempre se pode aperfeiçoar.
O problema repousa na deterioração acentuada do mercado de trabalho, na tibieza do crescimento tolhido pela austeridade permanente e na falta de um projeto de desenvolvimento inclusivo e solidário. Enquanto a sociedade, e não apenas o mercado, não repactua isso, resistir é preciso!
* Mestre em Economia, auditor federal de Finanças e Controle, secretário-executivo do Unacon Sindical.
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