Germano Johansson* e Adroaldo da Cunha Portal**
Em abril de 2018, Mark Zuckerberg, que tem fortuna maior que o PIB de 120 países, sentou-se perante o Congresso dos Estados Unidos para prestar um depoimento histórico. Foram dois dias e 600 perguntas feitas por aproximadamente 100 Senadores e Deputados norte-americanos. No meio de diversos pedidos de desculpas ele deixou um recado muito claro: “A minha opinião não é a de que não deve existir uma regulação [sobre o Facebook]”. Ele também esclareceu (até onde sua equipe jurídica permitiu) algumas falhas nos sistemas que governam esse novo mundo digital das redes sociais, e inclusive reconheceu erros da empresa. Mas o mais importante foi o reconhecimento da incapacidade do Facebook em desenvolver os freios e contrapesos necessários para um saudável funcionamento dentro do mundo democrático. Ele pediu regulamentação.
O depoimento de Zuckerberg no Congresso aconteceu depois do escândalo da Cambridge Analytica, que levantou discussões sobre privacidade, polarização política e interferência estrangeira nas eleições de 2016. Mas Zuckerberg não foi o único. Em entrevista de outubro de 2019, Bill Gates afirmou que gigantes da tecnologia como Google, Facebook, Amazon, por exemplo, estão exercendo tanta influência na nossa cultura, economia e na nossa vida diária, que se tornou necessário que os legisladores se envolvam em assuntos como privacidade e cyberbullying. “Está na hora dos governos entrarem na discussão e regulamentarem as grandes empresas de tecnologia“, disse ele.
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Fazem coro com as “Big Techs” os próprios usuários da internet. Na pesquisa 2020 Best Countries, realizada com mais de 20.000 pessoas de 36 países, 74% responderam que o governo deve limitar os poderes das gigantes de tecnologia. No Brasil não é diferente. Em uma pesquisa realizada pelo Ibope no início de junho de 2020, 90% dos brasileiros entrevistados afirmaram ser a favor de alguma regulamentação que combata fake news.
Problema global, soluções nacionais
Não é só no Brasil que a desinformação vem danificando as mais profundas bases das instituições democráticas. Diversos países vêm atuando das mais diversas maneiras para tentar coibir as práticas desinformativas e os seus tentáculos. Alguns acertos, alguns erros, alguns exageros, mas ainda sem uma fórmula mágica da regulação do que se convencionou chamar de redes sociais. Podem se esforçar para colocar a máscara que quiserem, mas é disso que se trata: regulamentação das redes sociais. Não começou ontem e não vai acabar amanhã.
PublicidadeSe a proteção das instituições democráticas já exigia um esforço constante de toda a sociedade, qual deve ser a nossa atuação quando as mentiras começam a trazer risco de vida para a população? É o que está acontecendo com as narrativas construídas durante a pandemia da covid-19. E, se Mark Zuckerberg e Bill Gates estão pedindo regulamentação, assim como outros países já iniciaram as suas tratativas, nós também não podemos adiar essa discussão no Brasil. O que falta para agirmos? Quantas pessoas precisarão deixar de acreditar na pandemia? Quantas pessoas precisarão abraçar o autoritarismo?
Dezenas de nações já implementaram marcos regulatórios nacionais para combater a desinformação. Estamos mais do que atrasados e estamos nos desinformando em massa. Como a OMS afirmou recentemente, estamos sendo engolidos por uma infodemia. Sem perspectiva de resposta. O trabalho que vem sendo feito na CPMI das Fake News foi congelado com o início da pandemia. Mesmo assim, as discussões a respeito de formas de combater a desinformação da internet continuaram. Esse é o projeto que está no centro do debate político e que devemos encarar de frente. O Senado Federal acaba de entregar sua contribuição, ao aprovar projeto de lei e remeter à Câmara dos Deputados sua proposta.
- Interferência estrangeira e anúncios desinformativos
A primeira coisa que é importante considerar é que não somos os clientes das plataformas de internet. Não mesmo. O cliente é quem contrata o serviço. No ano de 2019, por exemplo, o Facebook teve 98,5% de sua receita advinda de anúncios. Toda essa receita veio dos seus verdadeiros clientes: os anunciantes. A exibição e os cliques nos anúncios estão na essência do modelo de negócio destas empresas. E, se você não é o cliente, você é o produto.
Todas as informações que empresas de tecnologia têm a nosso respeito, como produto que somos, as ajudam a fornecer um serviço melhor para seus clientes. O anúncio certo, para a pessoa certa, na hora certa. Afinal de contas, elas não têm apenas as suas informações pessoais, mas também sabem os seus hábitos, interesses, perfis de consumo, rotina diária, e como e com quem você se comunica.
Talvez a principal pergunta aqui seja: o que eles não sabem sobre cada um de nós? No que diz respeito a isso, tivemos um avanço importante com a aprovação da LGPD no Congresso Nacional, é verdade. Mas existem outras três questões que apontam para aspectos não menos importantes.
Em primeiro lugar, novamente podemos lembrar do caso Cambridge Analytica. No depoimento de Zuckerberg no Congresso dos Estados Unidos, ele disse que a Cambridge Analytica era um anunciante – e, portanto, um cliente – do Facebook no ano de 2015. Zuckerberg disse que, quando o Facebook descobriu a Cambridge Analytica, a empresa havia dito que não estava utilizando os dados dos usuários e que estes dados haviam sido deletados. O CEO do Facebook afirmou que, a partir dessa informação, o caso estava considerado como encerrado. Isso, segundo ele, foi um erro. Essa é uma primeira evidência da liberdade que os anunciantes tinham (ou têm) na utilização da rede. Não sabemos até onde vai essa liberdade dos anunciantes ainda hoje. Afinal de contas, o tratamento dos dados do público é privado.
Em segundo lugar, entre junho de 2015 e maio de 2017, cerca de 470 contas estrangeiras foram responsáveis por anúncios direcionados ao público estadunidense. De acordo com o Chefe de Segurança do Facebook, as contas tinham como objetivo “mensagens políticas e sociais divisivas”. Foram mais de R$ 500 mil investidos em aproximadamente três mil anúncios. Os anúncios alcançaram 126 milhões de pessoas, ou 40% da população dos EUA. Que anúncios eram estes? Qual a jurisdição que um país tem para investigar estes ataques vindos de outro país? Como podemos nos proteger disso?
Um terceiro ponto é o fato de o Facebook, no ano de 2019, ter decidido que anúncios eleitorais advindos de outros países para as eleições da Austrália seriam proibidos (assim como já havia sido feito na Tailândia e na Indonésia). Segundo o diretor do Facebook para Austrália e Nova Zelândia, “a restrição se aplicaria a anúncios vindos de outros países com referência a políticos, partidos ou supressão eleitoral”, assim como anúncios com slogans políticos e marcas de partidos.
Finalmente, é importante ressaltar a decisão recente do Facebook de não fazer a checagem de anúncios políticos pagos. Todos concordamos que é difícil aceitar o fato de o Facebook não se responsabilizar pela verificação de conteúdo gerado nas plataformas pelos seus usuários e agir de forma conivente com a desinformação, mas é intolerável que as mídias sociais não se comprometam a filtrar a desinformação inserida em anúncios monetizados. Não podemos aceitar o impulsionamento da desinformação.
Não são apenas os usuários de internet que concordam com isso. Em outubro de 2019, em carta direcionada ao Conselho Diretor do Facebook, mais de 250 funcionários da empresa escreveram: “Free speech and paid speech are not the same thing” (Liberdade de expressão e impulsionamento de expressão não são a mesma coisa).
- A verdade como um direito do cidadão
Outro aspecto importante da avalanche das desinformações e das calúnias que transbordam das redes sociais é a falta de resposta que temos dado a elas. Enquanto na imprensa tradicional existem, apesar de enfraquecidos, meios jurídicos de se responsabilizar o editor e obter direitos de resposta – quem nunca assistiu o clássico direito de resposta de Leonel Brizola a TV Globo lido por Cid Moreira em pleno Jornal Nacional em 1994? -, na internet, a dinâmica não funciona assim. As decisões judiciais a respeito da desinformação nas redes, quando prosperam, dificilmente vão além da remoção do conteúdo desinformativo ou calunioso. Vez ou outra, a decisão exige publicação de retratação por parte do desinformado ou caluniador.
A verdade é difícil de ser conceituada. Enquanto ela exige credibilidade de forma objetiva, ela também pressupõe compreensões subjetivas. Enquanto ela demanda acordos na realidade dos fatos, ela também permite diferentes interpretações. Enquanto ela tem valor na esfera pública, ela segue privada para os indivíduos. Mesmo com essa subjetividade e amplitude e com a devida proteção a liberdade de expressão, as instituições estão encontrando mecanismos para justificar a remoção conteúdos difamatórios e desinformativos, por exemplo.
No entanto, a forma coordenada como agem os destruidores de reputação e da democracia e os promotores da mentira e do caos exige uma resposta que garanta o direito à verdade como princípio edificante do nosso processo civilizatório. Afinal de contas, de que vale remover um conteúdo que afirma que métodos caseiros vão curar a COVID-19 depois de eles terem sido levado como verdade a milhões de pessoas? Da mesma forma, de que vale ocultar um conteúdo divulgado a outros milhões de pessoas com mentiras difamatórias a respeito de uma pessoa pública? Mitiga danos futuros? Sim. Reduz danos passados? Claro que não.
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As empresas responsáveis pelas redes sociais precisam garantir, visando ao bem estar social, que, quando um conteúdo desinformativo ou calunioso for exibido a qualquer cidadão – seja por decisão das empresas ou por decisão judicial – este mesmo cidadão seja informado de que o conteúdo ao qual ele teve acesso era falso. É um direito de cada um de nós ter acesso à versão verdadeiramente informativa daquele conteúdo ou à informação que mostre que aquele conteúdo simplesmente era falso.
- Internet e soberania de dados
Atualmente, quando ocorrem processos de investigação na justiça brasileira que necessitam de acesso a informações advindas de provedores de internet no exterior, a justiça brasileira acaba se subordinando à justiça americana. E as respostas das empresas de tecnologia se fundamentam em um Acordo de Assistência Judiciário-Penal firmado entre Brasil e Estados Unidos (o MLAT).
Em audiência realizada em fevereiro deste ano no STF, a respeito do Acordo, o Ministério da Justiça mostrou que, entre os anos de 2016 e 2019, 74% das solicitações realizadas pela justiça brasileira não foram cumpridas total ou parcialmente. Além disso, o tempo médio de resposta é de dez meses.
Um exemplo disso aconteceu recentemente na CPMI das Fake News. De acordo com matéria noticiada pela Folha de São Paulo, o Facebook se recusou a repassar informações requisitadas pelo presidente, senador Ângelo Coronel.
A justificativa foi a legislação americana:
“O fornecimento de conteúdo de comunicações fora das exceções legais pode configurar violação da lei americana pelo Facebook Inc. e expõe tal entidade ao risco de ser responsabilizado juridicamente.”
Em abril de 2016, o Facebook anunciou que mais de cem milhões de brasileiros utilizavam a plataforma. E, com todas as informações que eles acumularam sobre esses usuários, eles possuem claramente a capacidade de influenciar decisões políticas e econômicas destes indivíduos. Não é à toa que cinco das dez maiores empresas do mundo são gigantes da tecnologia, todas norte-americanas. Afinal de contas, dados serão para o século XXI o que o petróleo foi para o século XX.
Desde as revelações de Edward Snowden sobre os programas de vigilância dos Estados Unidos em 2013, vários países do mundo têm se preocupado com o fluxo dos dados de seus cidadãos. As empresas de tecnologia naturalmente se opõem a regulamentações de restrições geográficas para armazenamentos de dados. O argumento é que essa seria uma medida protecionista.
A colonização moderna não necessariamente pressupõe invasões físicas. Tudo isso pode ser feito através de controle das redes e dos bancos de dados com alguns cliques. A dominação de todos os nossos dados online está aumentado cada dia mais a hegemonia de corporações multinacionais em todo o mundo. No caso da tecnologia, o interesse geopolítico é ainda maior. Em pronunciamento ao G20 em 2019, Donald Trump afirmou que “os Estados Unidos se opõem a políticas de localização de dados que têm sido usadas para restringir os fluxos comerciais, violar privacidade e proteções de propriedade intelectual“. Por outro lado, Rússia, China, Índia e diversos outros países têm afirmado que a localização de dados é um caminho importante para proteger os seus cidadãos. Isso se confirma se olharmos para as dificuldades que a justiça brasileira tem tido até agora com o MLAT.
Da forma como a nossa soberania digital vem sendo desprezada, nós não apenas não temos jurisdição sobre os dados produzidos dentro do nosso território, como, em muitos casos, subordinamos estes dados à legislação e ao monitoramento norte-americano. Pela manutenção dos dados geograficamente dentro de seu território, agências norte-americanas têm acesso facilitado aos dados pessoais e aos dados organizacionais armazenados nos servidores do país. Enquanto isso, por aqui, aguardamos dez meses para não receber as informações que solicitamos judicialmente.
Alguns argumentam que o Brasil deixaria de aproveitar os ganhos das “economias de escala” advindos da centralização dos dados em servidores internacionais, que o acesso de usuários brasileiro a alguns serviços na internet seria restringido ou que surgiriam ineficiências para as grandes empresas de tecnologia. Ignoram que somos um dos cinco maiores mercados de internet do planeta e que a construção de um centro tecnológico aqui no Brasil poderia dar combustível para um novo futuro de avanços em inovação e tecnologia para o nosso país. O estabelecimento destes centros aqui no Brasil teria um efeito dominó no nosso desenvolvimento tecnológico.
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Acima de todas estas questões, existe uma disputa geopolítica e uma discussão do potencial tecnológico que temos em nosso país. Armazenar com segurança as informações geradas dentro do nosso território: (1) aumentará a nossa capacidade competitiva em todas as infraestruturas de ciência e tecnologia; (2) poderá ser um catalisador de inovação para o nosso país; (3) nos protegerá de vigilâncias de agências de inteligência de outros países; (4) protegerá a privacidade e a segurança dos nossos cidadãos; e (5) dará suporte para as investigações judiciais no Brasil.[1]
E o que você tem a ver com isso?
Basicamente tudo. A disputa política que se trava no Congresso atualmente, tanto na CPMI das Fake News, quanto na aprovação do Projeto de Lei 2630/2020, também diz respeito a isso. E, apesar do Marco Civil da Internet e da Lei Geral de Proteção de Dados aprovados no Brasil, ainda falta avançarmos muito para proteger nossa democracia, nossos cidadãos e a nossa soberania.
As plataformas digitais nunca foram e nem nunca serão neutras. São empresas cujos modelos de negócio dependem diretamente de monitorar, modificar e manipular dados de comportamentos dos usuários. E, depois disso, vender para quem pagar mais caro. Acontece que a forma de proteger esse modelo de negócio também é desinformativa. Em nome da liberdade de expressão, escravizam os seus dados e os submetem a ordenamentos jurídicos paralelos.
Liberdade de expressão para quem, cara pálida? Recebemos mentiras e distorções por todos os lados. Com dinheiro, as mentiras podem ser potencializadas sem nenhuma verificação. Além disso, estamos submetidos aos algoritmos que determinam a nossa navegação na internet.
De acordo com artigo recente do Wall Street Journal, executivos do Facebook foram informados em 2018 que os algoritmos da empresa alimentavam a divisão e polarização dos usuários. Mesmo cientes dos efeitos deletérios na sociedade, os executivos optaram por ignorar e se abster da responsabilidade. Segundo o relatório, [interferir nesse processo] iria reduzir o engajamento das pessoas e o tempo que elas passariam na rede. Se sozinhas as empresas não conseguiram frear o ódio e a desinformação, é hora de os governos atenderem o pedido de Mark Zuckerberg por mais regulamentação.
E, como estamos no Brasil e na América Latina, naturalmente nossa missão é ainda mais desafiadora. Na internet do colonialismo 2.0, ninguém se responsabiliza, e a legislação brasileira ainda não tem jurisdição. Podemos não ter soluções perfeitas, mas precisamos construir consensos, que devem começar pela responsabilização dos mal-intencionados e pela autodeterminação dos povos. Se, por enquanto, estamos submetidos a uma comunicação digital em estruturas de empresas multinacionais, não podemos deixar de fazer com que estas empresas respeitem a legislação brasileira e fechem suas portas para interferência internacional nos assuntos do Brasil.
É como disse o filósofo Karl Popper ao definir o paradoxo da tolerância: “Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância [será destruída com eles]”. A nossa luta contra a censura e em defesa dos usuários da internet, necessariamente, passa pelo fortalecimento das instituições, que, com tanto sangue, suor e lágrimas, estamos construindo.
*Germano Johansson é assessor parlamentar na Liderança do PDT no Senado Federal, servidor público e pesquisador em tecnologia. Mestre em Planejamento e em Infraestrutura pela University of Southern California. Engenheiro pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
**Adroaldo da Cunha Portal e jornalista, servidor público, Chefe de Gabinete da Liderança do Partido Democrático Trabalhista (PDT), no Senado Federal.
[1] Selby, John. (2017). Data localization laws: Trade barriers or legitimate responses to cybersecurity risks, or both?. International Journal of Law and Information Technology. 25. 213-232. 10.1093/ijlit/eax010.