Fabiano Contarato*
Como membro titular do Parlamento do Mercosul, que reúne parlamentares das nações latino-americanas nesse bloco político e econômico regional, denunciei a barbárie contra os povos indígenas que vem ocorrendo de forma sistemática nos últimos seis anos no Brasil.
Além de expor este relato trágico num fórum internacional, é preciso que lancemos mão de todos os recursos, dentro do território brasileiro, para reverter o alarmante aumento da violência contra indígenas durante os governos Temer e Bolsonaro. O número de homicídios triplicou entre 2016 e 2020, incluindo os assassinatos de jovens líderes como Paulo Paulino Guajajara e Ari Uru-Eu-Wau-Wau, que atuavam na proteção de suas terras contra madeireiros ilegais.
Neste mesmo período os conflitos territoriais foram multiplicados por oito; os casos de invasão e de exploração ilegal de recursos naturais mais do que quintuplicaram; e a desassistência na saúde praticamente dobrou desde 2016, sem contar os efeitos observados na pandemia de covid-19.
No início da pandemia, em 2020, os indígenas estavam particularmente vulneráveis, em razão da falta de assistência e de um número crescente de invasões, de modo que foram atingidos pela covid-19 de maneira desproporcionalmente grave.
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O Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia do Senado Federal reconheceu que a vulnerabilidade dos indígenas foi exacerbada por uma campanha de perseguição que, isoladamente, já constitui crime contra a humanidade, e que as investidas contra os indígenas, nas searas jurídica e legislativa, bem como sob a forma de apoio político à intrusão, continuaram paralelamente à pandemia.
Concluiu-se que o efeito da pandemia sobre os indígenas foi deliberadamente potencializado pela negligência e pelo oportunismo do governo federal e dos invasores. A CPI apontou que o Presidente da República, alguns de seus ministros e outros agentes públicos têm diferentes graus e tipos de responsabilidade por crimes contra a humanidade, sob as modalidades de perseguição e extermínio.
Muitos anciãos, que eram guardiões da cultura, da história e das línguas ancestrais, desempenhando um papel vital na sobrevivência da sua cultura, morreram sem a devida assistência.
Em suma, a CPI apontou o nexo causal entre as ações e omissões do governo federal e os danos sofridos pelos indígenas durante a pandemia de covid-19. Além disso, a intenção criminosa foi evidenciada pela retórica e pelos diversos atos praticados pelo governo federal e por seus apoiadores, que demonstravam a intolerância e o desejo de explorar as riquezas naturais das áreas protegidas.
Crimes e garimpo
Em abril de 2022, o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kwana, Júnior Hekurari Yanomami, tornou público o relato de crimes que teriam sido cometidos por garimpeiros na comunidade Aracaçá, no Estado de Roraima. Ele relatou o estupro e a morte de uma menina Yanomami de doze anos, além do desaparecimento e presumível afogamento de outra criança, de três ou quatro anos. A comunidade foi parcialmente incendiada e os habitantes desapareceram na mata.
Essa denúncia, que gerou grande comoção nacional, segue sob investigação pela Polícia Federal. Há indícios de que o caso possa não corresponder a uma sequência de fatos que teriam ocorrido na comunidade Aracaçá, mas que represente, na verdade, um conjunto de casos semelhantes ocorridos em diferentes pontos da terra Yanomami.
Independentemente da materialidade, ou não, do episódio supostamente ocorrido na comunidade Aracaçá, há uma invasão de garimpeiros ilegais na terra Yanomami, produzindo numerosos casos de devastação ambiental, contaminação por mercúrio, ataques armados, proliferação de armas e álcool, aliciamento, violência sexual, desagregação social, exposição à covid-19, além de alastramento da desnutrição, da malária e de outras doenças.
Violência armada e ódio
Some-se a isso o discurso de ódio, o assédio constante por meio da violência armada, o aliciamento para o trabalho análogo à escravidão e para a prostituição, a ameaça de retirada de direitos e garantias, a desassistência, a marginalização socioeconômica, bem como o preconceito e a discriminação sob várias outras formas, e temos como resultado, além da desagregação cultural, um panorama no qual a degradação ambiental, a violência e a presença de intrusos são fatores que ameaçam gravemente a segurança e a manutenção dos modos de vida das comunidades indígenas.
O ecocídio acarreta etnocídio, pois inviabiliza a continuidade dos modos de vida tradicionais, adaptados aos biomas. Os diversos tipos de ataques sofridos pelos indígenas podem ser compreendidos como um conjunto de atos consistentes com as hipóteses legais de genocídio.
Ao longo dos últimos anos, organizações representativas dos povos originários têm apresentado denúncias perante organismos internacionais, no sentido de que a política indigenista federal tem dado lugar a uma política de integração e genocídio.
A taxa de suicídio entre a população indígena tem sido, consistentemente, três vezes maior do que aquela observada no conjunto da população, sendo especialmente alta entre crianças e adolescentes, notadamente do sexo masculino. É relevante mencionar que o suicídio tem distribuição desigual entre os povos indígenas, ou entre comunidades de um mesmo povo, o que reflete diferenças na intensidade e na qualidade do contato com a sociedade circundante.
Desamparo e suicídios
Na população em geral, o risco de suicídio é agravado por fatores como alcoolismo e drogadição, perspectivas negativas quanto ao futuro, sensação de insegurança e exposição à violência física e simbólica. No caso dos indígenas, a discriminação, as condições precárias de vida, o desamparo, os conflitos com invasores e os choques culturais potencializam esses fatores, causando intensa desagregação social, econômica e cultural, o que resulta em taxas de suicídio mais elevadas.
Esses, no entanto, não são os únicos ataques aos povos originários do Brasil. Outra questão complexa está sob julgamento do Supremo Tribunal Federal e faz parte da campanha desencadeada no governo Temer e enfaticamente apoiada pelo presidente Bolsonaro. Trata-se do caso do marco temporal.
O art. 231 da Constituição Federal reconhece os direitos originários dos indígenas sobre: i) as terras que tradicionalmente ocupam; ii) as utilizadas em suas atividades produtivas; iii) as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e; iv) as necessárias para sua reprodução física e cultural.
Além da relevância jurídica, o caso é revestido de importância política, pois o Presidente da República já sinalizou, em algumas ocasiões, que não pretende acatar eventual decisão contrária à tese do marco temporal, justificando sua postura a partir de hipérboles sobre pretensões indígenas sobre grande parte do território brasileiro e alegada insegurança para o agronegócio.
Também no Congresso Nacional pairam ameaças sobre as populações indígenas brasileiras. O governo e a sua base no Congresso têm se empenhado na aprovação de iniciativas voltadas para a legalização de atividades constitucionalmente proibidas, como o arrendamento rural e o garimpo em terras indígenas.
Uma delas é o Projeto de Lei (PL) nº 191, de 2020, de autoria do Poder Executivo, que tem por finalidade legalizar a mineração em terras indígenas e tem sido um dos principais pontos de resistência dos povos originários, contrários à sua aprovação.
Marco temporal
Outra iniciativa é o PL nº 490, de 2007, que dispõe sobre o Marco Temporal. Além do PL nº1459/2022 que flexibiliza o uso de agrotóxicos banidos em outras partes do mundo. Registre-se que essas proposições, cujo impacto sobre os povos indígenas é imensurável, embora previsível, são discutidas sem ampla consulta às comunidades interessadas, que são, ainda, sub-representadas num Parlamento onde apenas uma deputada – Joenia Wapichana – se identifica como indígena.
Esse é o quadro que tem resultado em denúncias sérias e formais em várias frentes de luta dos movimentos ativistas e das comunidades indígenas. Quero ressaltar que o que há de mais preocupante em toda essa situação é a violência dirigida à coletividade indígena, que tem por finalidade eliminar o grupo como tal, o que nos remete ao conceito legal de genocídio.
A eliminação de minorias, no sentido político, atende a ideais totalitários de homogeneidade do povo, que não tolera divisões, distinções e identidades consideradas “desviantes” do padrão adotado como norma. Essa violência, como é óbvio, envolve a expropriação das riquezas sob poder dessas populações.
Da mesma forma, almeja eliminá-las para que deixem de constituir barreira à exploração de riquezas existentes em seu território. A demagogia e o populismo são marcantes nesse pensamento, no qual líderes do “verdadeiro povo” propõem luta contra um grupo que é apresentado como inimigo dessa coletividade.
É preciso dar fim a esses crimes. Esta é apenas mais uma das muitas denúncias feitas em foros internacionais, que pretende contribuir para a proteção das nossas populações indígenas, na forma do que garante a Constituição brasileira, que, infelizmente, tem sido desrespeitada pelas nossas autoridades. Espero, sinceramente, que estas palavras ecoem e produzam efeitos pelo bem dos povos indígenas brasileiros.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.
*Fabiano Contarato é senador pelo PT do Espírito Santo