*Thiago Carneiro
“Cidadão, não; engenheiro civil, formado, melhor do que você”. “Eu sou desembargador!”. “Aqui é Alphaville!”. “Você tem inveja disso aqui, ó (aponta para a cor da pele)”.
O que esses casos recentes têm em comum?
Essas frases foram ditas por über-cidadãos. Não estou falando do aplicativo Uber, mas sim da palavra alemã über, que significa “acima dos demais”, “superior”. A categoria dos über-cidadãos não é prevista na Constituição Federal, mas se mantém no Brasil pela via da tradição.
A postura dos über-cidadãos é a de ser “amigo do rei”, para quem as leis são mais brandas. A igualdade é para os outros, pois os über-cidadãos são especiais. Eles podem descumprir a lei se lhes for conveniente, pois os amigos do rei estão acima dos guardas. Aliás, em três dos quatro casos acima, ficou evidente como os agentes da lei ficam intimidados quando alguém age como amigo do rei.
O psicólogo social Theodore Singelis (e outros pesquisadores que o acompanham) classifica culturas de países como sendo mais individualistas ou coletivistas, mas também avaliam se elas são do tipo vertical ou horizontal. Nessa classificação, o Brasil é um país coletivista vertical. O nome é bonitinho, mas não é uma coisa boa, não.
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O coletivismo vertical não representa a preocupação ampla com todas as pessoas da sociedade. Pelo contrário. Culturas coletivistas são aquelas em que cada indivíduo somente se preocupa com a coletividade próxima dele, ou seja, amigos e parentes. E o coletivismo vertical tem a característica de colocar essas coletividades em uma hierarquia social – em outras palavras, têm-se castas informais. Daí temos um terreno fértil para frases como “você sabe com quem você está falando?”, “eu sou melhor do que você!”, “o amigo do meu cunhado é filho de um senador!”, “não dá para admitir ser tratado como qualquer um, né?”
Dói ser tratado como qualquer um? Dói, não dói?
A verdade é que dói viver em democracia. Dói no ego. Numa democracia, todo mundo vai ser tratado como “qualquer um”. Não existem pessoas especiais. Não existem über-cidadãos. Melhor já ir se acostumando.
Mas ser apenas cidadão não é ruim.
A palavra cidadão é usada de forma respeitosa, hoje em dia, graças à reflexão de pesquisadores e gestores públicos, iniciada quase 20 anos atrás.
No início dos anos 2000, seminários organizados na Universidade de Brasília, pelo Grupo de Estudos em Ergonomia Aplicada ao Setor Público (ErgoPublic), serviram de ponto de encontro para gestores dos serviços de atendimento de órgãos públicos. Um dos pontos mais discutidos foi, exatamente, qual a melhor palavra para se designar os usuários dos serviços públicos. Havia franco diálogo entre o ErgoPublic (coordenado pelo Professor Mário César Ferreira) e o recém-nascido Programa Gespública (formalizado em 2005, encerrado em 2017, coordenado pelo gestor Paulo Daniel). A discussão, portanto, não se restringiu ao ambiente acadêmico.
Na época, falava-se em “foco no cliente”. Mas os gestores admitiam que havia problemas em chamar o usuário do serviço público de “cliente” – afinal, o usuário de serviços públicos não estão ali comprando coisas. A palavra “usuário” também ganhou rápida antipatia.
E se chamássemos o usuário de serviços públicos de “cidadão”? Ficaria bom?
Cidadão é quem tem direitos políticos, como diz a Constituição Federal. Mas também é mais do que isso. Cidadão também é contribuinte e, como contribuinte, ele deveria ser tratado como um acionista do Estado, não é? Talvez sim, mas esse acionista não pode se colocar acima das leis. Além disso, o servidor público que presta o atendimento também é um cidadão, também é acionista do Estado, está no mesmo patamar de importância. Não pode um cidadão exigir respeito sem respeitar a cidadania do outro.
O contexto da discussão era atendimento ao público, mas também se aplica a guardas tentando aplicar multas.
Qual é a conclusão?
A conclusão é que a palavra cidadão é a correta para designar a todos. Não é à toa que ela passou a ser usada como padrão nos sites governamentais e nas comunicações de governo. Ela indica uma pessoa que é contribuinte, tem direitos políticos, mas também cumpre regras. O Estado não separar cidadãos por segmentos de importância. Não há amigos do rei.
Quando um fiscal chama alguém de cidadão, está reforçando o ideal de tratamento igualitário a todos, sem distinção. O fiscal provavelmente aprendeu a usar essa palavra em cursos de formação no setor público, pois é nesses cursos que a importância dessa palavra passou a ser ensinada.
Mas ainda não é fácil ser tratado como cidadão. Quem se acha um über-cidadão precisa se acostumar com a ideia de, numa democracia, ser tão importante quanto qualquer outro cidadão. E há também o outro lado: infelizmente, muitos brasileiros não recebem o tratamento digno que merecem, por conta de preconceitos enraizados por cor da pele e classe social. Há muito o que se corrigir para a igualdade de tratamento não virar letra morta em nossas leis.
*Thiago Carneiro é Doutor em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília com a pesquisa Engajamento Político: Participação Política no Brasil e na Suécia, predito por Estereótipos sobre Parlamentares, Educação Política e Contágio Comportamental.