Pablo Bezerra Luciano*
“Eu me sinto invencível” é o título do vigoroso relato do ator Marco Pigossi, recém-publicado na Edição 184 da Revista Piauí. Num texto que nos convida a várias leituras, M. Pigossi expõe as dificuldades familiares, sentimentais e profissionais que enfrentou por ser gay. O relato, todavia, transcende a mera exposição de questões pessoais, pois é representativo dos dramas enfrentados por parcela de membros de nossa sociedade em razão de serem o que são.
Sem referências de gays em seu convívio, M. Pigossi sentia-se — diz ele — “solitário e sem amparo”. Escolhendo dedicar-se ao teatro e mais tarde às telenovelas, ele não via espaço para se assumir gay, pois, se o fizesse, sentia que “todas as portas se fechariam […] de forma automática”. M. Pigossi supunha que aparecer com o namorado prejudicaria sua carreira. Numa busca por aceitação, achava que precisava tentar desesperadamente não desapontar ninguém; daí ter vivido uma vida marcada por “medo da minha família, medo dos meus amigos, medo da minha carreira”.
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A ansiedade experimentada por M. Pigossi foi a mesma de relevante parcela de LGBTQIA+ até 25 de novembro de 2021, quando postou em sua rede social uma foto em que aparecia com seu namorado de mãos dadas. Vidas invisibilizadas; vidas baseadas no medo de desagradar; vidas que a promessa emancipatória do humanismo individualista lançado há mais de dois séculos ainda não conseguiu elevar e ascender.
O depoimento de M. Pigossi leva-nos a refletir que, no meio jurídico, nos acostumamos a articular contra o Estado nossas críticas relacionadas à imposição de comportamentos e modos de ser. Segundo esse ponto de vista, os maiores riscos para o pleno desenvolvimento das nossas personalidades viriam do Estado.
Decerto esse cacoete decorre das disputas contra o Antigo Regime ou da ruptura civilizatória proporcionada pelo nazismo, um regime político em que o Estado montou uma estrutura industrial de perseguição e extermínio de quem era considerado “diferente”. Porém, convém temperarmos nossos receios jurídicos, ou redirecionarmos parte deles para as pressões sociais impostas pelas famílias e pela comunidade que impedem, como lembrado por M. Pigossi, um casal gay de andar de mãos dadas em público — um gesto de afeto até banal entre os heterossexuais. A reconfiguração de nossa estrutura social para um ambiente de mais liberdade e menos hierarquizante não se dará por passe de mágica se seguirmos olvidando a opressão extraestatal.
É importante reconhecermos que tivemos avanços pela ação do Estado contra velhas ordens sociais organicistas, em nome de mais liberdade de ser, agir e pensar. Claro, há muito a avançar. Mas os avanços virão mais rapidamente se não cairmos no ilusionismo desmobilizador de que sempre vêm do Estado — e só do Estado — os obstáculos ao desenvolvimento de nossas personalidades. A família e a comunidade sempre exerceram com grande eficácia esses papéis.
As relações de poder da sociedade pré-industrial eram marcadas pela autoridade do chamado pater familias, o chefe de família da antiga Lei das Doze Tábuas dos romanos, que tinha sobre os filhos nascidos de casamento legítimo o direito de vida e de morte, podendo inclusive vendê-los. E o poder político pouca atenção dava para a dinâmica de muita tensão e violência física e moral no interior das famílias.
A lógica da hierarquia e submissão não é, contudo, invenção romana nem exclusividade da humanidade, pois outros animais, como os grandes primatas, costumam se relacionar segundo uma cadeia de comando em cujo ápice se encontra o “macho-alfa”. Em “Shadows of Forgotten Ancestors” (“Sombras de Antepassados Esquecidos”), Carl Sagan e Ann Druyan lembram-nos que, nos dez mil anos de história humana, essa modalidade de relação foi o lugar-comum de nossas instituições, sendo justificada como ordenança divina por filósofos. A sociedade era um organismo, cuja mecânica precisava ser reproduzida por todas as suas partes, a começar pela família. Os entes políticos, os empreendimentos econômicos, as ordens religiosas e as famílias e pouco se distinguiam do ambiente militar. Porém, nos últimos séculos, transformações foram observadas na forma com a qual os humanos se organizam, de modo que certas instituições baseadas no binômio hierarquia-subordinação foram quase excluídas da Terra, a exemplo da escravidão, outrora tão justificada.’
Em “Sapiens: A Brief History of Humankind” (“Sapiens: Uma Breve História da Humanidade”), o historiador Yuval Harari destaca que, até a Revolução Industrial, a família era mais do que a “base” da sociedade. A família — no dizer de Harari — era a assistência social, o plano de saúde, o sistema educacional, o mercado, a previdência, a segurança patrimonial, e o que existia em termos de comunicação social e distribuição de justiça. A família e a comunidade proviam apoio material a seus membros, representando o critério geral de ordenança da sociedade. Era o tempo das relações de servidão, do coronelismo e dos duelos, quando os reinos se limitavam à tributação para fazer frente a guerras e a obras públicas.
Em busca de segurança para os negócios, entre os séculos XVIII e XIX, os mercados e os entes estatais passaram a relativizar a proeminência das famílias em assuntos como segurança e justiça. O Estado e o mercado foram os fiadores da crença de que as pessoas poderiam escolher a religião, a profissão e casar-se com a pessoa de seus amores. De objeto paciente sob o comando do pater familias, surge o indivíduo, como sujeito ativo de direitos, capaz de encontrar por si novos sentidos para a existência não necessariamente coincidentes com as aspirações da comunidade. É nesse contexto de alienação da vida familiar que Harari destaca que o Estado e o mercado são os pais do indivíduo, e o indivíduo só pode sobreviver graças a eles.
Não se trata de movimento homogêneo, mas podemos perceber que há certa tendência de rebaixamento do status da instituição familiar, à medida em que o Estado moderno democrático criou o humanismo individualista e dele se alimentou. Num processo que envolve oportunidades e perigos diante da falta de um sentido para a vida previamente dado pela comunidade, o centro organizador da sociedade passa a ser o indivíduo, mas não como sujeito atomizado. O indivíduo nas sociedades democráticas — no dizer de Norberto Bobbio na obra “Liberalismo e Democracia” — é reaproximado “dos outros homens, a ele semelhantes, para que da sua união a sociedade seja recomposta não mais como um todo orgânico, mas como uma associação de indivíduos livres”. E paulatinamente as relações orgânicas de hierarquia e subordinação são substituídas pelas relações fundadas nas faculdades tipicamente humanas de coordenação, deliberação e consenso, abrindo mais espaço para o afeto e conforto mútuos intrafamiliares.
Nada está garantido. No Brasil, o processo de emancipação da comunidade LGBTQIA+ está a alguns passos da conscientização sobre os direitos de outras minorias desfavorecidas como mulheres e negros. Para a comunidade LGBTQIA+, ainda é preciso quebrar a lógica da invisibilidade que faz com que não tenhamos até hoje nenhuma lei tratando de garantir-lhes mais dignidade. É preciso superar a busca por “aceitação” ou “aprovação” da sociedade. É preciso fundamentalmente que a inserção de seus membros na sociedade não decorra de excepcional esforço individual ou de talentos extraordinários, às custas de conflitos psicológicos decorrentes do pavor constante de desapontar a família, os amigos, colegas de profissão ou o público em geral. O caminho, porém, já está dado: passa pelo cultivo das ferramentas da educação, do diálogo e da empatia para o qual devem concorrer políticas públicas estatais que rompam a tradicional lógica das relações de dominação-submissão.
*Pablo Bezerra Luciano é formado em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e Procurador do Banco Central do Brasil. A opinião manifestada é estritamente pessoal.
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