Juliana Romão*
A implementação das cotas eleitorais de gênero deve ser intransigente na meta de atingir a paridade política, favorecendo a inclusão de mulheres diversas, suas agendas e perspectivas, na esfera pública. Não é uma obviedade. Como dispositivo de ação afirmativa capaz de fortalecer a representação feminina no espaço político, uma espécie de “via rápida” de reparação e redistribuição das condições de disputa, as cotas se confirmam necessárias e efetivas como ponto de partida, mas exigem fôlego sincronizado a outros dispositivos legais, políticos e institucionais para verdadeiramente alterar o quadro formal e simbólico do exercício do poder.
É o que demonstram teoria e prática de três décadas de experiências na América Latina, que o Brasil parece observar de longe, enquanto segura a lanterna em quase todos os índices de participação política feminina no bloco e fora dele. Quando não orientadas a promover uma mudança cultural, de sentido, que favoreça a equidade de gênero e raça na política e demais espaços de poder, as reformas são estéreis, funcionam como simulacro estratégico: programadas para não funcionar e funcionando para conter.
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Visualizemos: o parlamento federal brasileiro tem hoje o maior percentual de representação feminina da história: ínfimos 15%, isso 25 anos após a implantação da lei que instituiu as cotas eleitorais em 1995 (aplicada nas eleições municipais de 1996). É a metade da projeção de 30% de reserva de candidaturas determinada pela legislação atual. Dito de outra forma: nestas duas décadas e meia, uma nova geração de mulheres nasceu, cresceu e tornou-se candidata/cidadã/eleitora enquanto o incremento na representação passou de 5% a 15%. Em 2021, o sistema de cotas brasileiro ainda é frágil ao ponto de endossar um parlamento 85% masculino e negligenciar uma incidência concreta de inclusão racial.
As más línguas, a ignorância e o machismo repetem prontas-respostas. Tem aquela rudimentar, do mimimi, que auto-evidencia a ausência de argumento; e frases como “as mulheres não querem estar na política”, uma antiga fake news usada para validar a exclusão e desestimular mudanças. São estereótipos que sobrepesam a já difícil carreira política feminina.
Para efeitos de comparação e desmonte da falácia, alguns números: a Argentina, primeiro país a implantar o regime de cotas eleitorais de gênero na América Latina, partiu com legislação de 30% de candidatas em 1991 e, de estreia, elegeu 38% de mulheres, atingindo em 2017 a paridade. O México inaugurou em 1996 a cota de 30% de candidatas e chegou ao equilíbrio em 2014, tendo em 2019 aprovado nova reforma constitucional para aplicar a paridade nos três níveis de governo e nos três poderes. Honduras equalizou o gênero no parlamento em 2012, depois da legislação de cotas criada em 2000. A Costa Rica estreou em 1999 impondo a maior porcentagem do bloco, 40%, e dez anos depois atingiu a igualdade. Na AL o debate não é mais sobre cotas, mas o refinamento da paridade.
PublicidadeFebre das cotas
Entre 1990 e 2014 um total de 16 países latino-americanos criaram leis favoráveis à condição competitiva das mulheres políticas, determinando o cumprimento de percentual mínimo de candidaturas ou de assentos. Foi uma profusão que elevou a temperatura e fez a média de legisladoras nacionais no bloco passar de 9% para 25% no período, tendo a Bolívia puxado a média para cima, e o Brasil para baixo [1].
Duas iniciativas estimularam esse efeito de contágio: a precursora “Ley de Copos” da Argentina (1991), fruto da forte pressão do movimento de mulheres no país. Os partidos foram obrigados a incluir o mínimo de 30% delas nas listas eleitorais, com punição aos descumpridores. Em 2017, o Congresso aprovou a lei de paridade de gênero em âmbitos de representação política e incluiu a alternância de gênero na lista – aumentando as chances de ingresso – entre outras garantias de equidade. O segundo impulso foi a Conferência Mundial da Mulher (Beijim, 1995), marco de conquistas femininas no plano internacional e forte influência na alteração da perspectiva de justiça político- eleitoral na democracia.
As experiências das reformas não foram lineares, muito menos sem tensões. Seus efeitos variaram, obviamente, de acordo com o formato e nível de exigência legal, das características dos sistemas eleitorais vigentes (lista fechada x lista aberta, etc), da cultura partidária, além dos contextos social e cultural de cada país.
Sistemas políticos favoráveis
Passadas as décadas hoje sabe-se que não é qualquer combinação ou formato legal que modifica a distribuição de poder e de espaço. Há características específicas que convertem a política numa “cota forte”, capaz de pressionar pela paridade e avançar à transversalidade (nas três instâncias e nos três poderes). Falando da América Latina, as pesquisadoras Freidenberg e Lajas García [2] listam algumas: sistema eleitoral favorável ao gênero; vontade das elites políticas; debate social amplo; organismos eleitorais comprometidos com a legalidade das exigências de gênero; mecanismos que contribuam com as mulheres candidatas; e um movimento de mulheres ativo e vigilante da aplicação das regras.
O excelente seminário Participação Política das Mulheres e Cotas no Brasil (ONU Mulheres/UnB/FolhaSP) realizado em abril também indicou caminhos para fortalecer a ação afirmativa no cenário brasileiro: enfrentar a violência política contra as mulheres (candidatas, filiadas e parlamentares, além das ativistas e jornalistas) com debate social e medidas legislativas; criar oportunidades concretas de carreiras políticas femininas nos partidos; estipular medidas de transparência partidária; estimular o uso qualificado do 5% do fundo partidário; ampliar a atuação fiscalizadora do TSE; optar pela lista fechada com alternância de gênero; distinguir recursos específicos para apoiar eleições de menor porte (onde mulheres poderiam ser mais beneficiadas); definir teto de gastos distintos entre homens e entre mulheres (já que há desigualdades profundas de condições de autofinanciamento e captação externa de recursos); aplicar sansões e prêmios aos partidos que se provarem paritários; construir perspectivas interseccionais de incremento de mulheres garantindo as representações de raça e classe.
Mulheres em movimento
No Brasil e na América Latina o movimento de mulheres cumpre um papel fundamental de pressão por mudanças. As feministas têm representado a força social mais intensa e constante de incidência por direitos políticos femininos, luta que tornou possível a criação da lei brasileira de cotas (1995) e seus aperfeiçoamentos em 2009, 2014, 2015, 2018, 2019 e 2020. Destaques à primeira cassação de chapa por fraude eleitoral com candidatura fictícia de mulheres, à obrigatoriedade do preenchimento mínimo de candidatas, com igual percentual de tempo de TV e de financiamento, além da recente exigência da proporcionalidade de raça na distribuição dos recursos do Fundo Eleitoral.
A superação dos obstáculos que as mulheres enfrentam na política, no entanto, é ainda mais complexa e ultrapassa a importantíssima regulação eleitoral já listada. São barreiras multidimensionais derivadas das desigualdades estruturais que aumentam a sobrecarga feminina, reduzindo substancialmente sua disponibilidade de tempo, de recursos, e de estímulo, cenário agravado pelos estereótipos que as acompanham, pelo racismo e pelas situações de assédio e violência política que vivenciam.
Tendo a paridade como pressuposto para o desenvolvimento da democracia, os consensos regionais de Quito (2007) e de Brasília (2010) ratificaram compromissos para superar o desafio de acompanhar as cotas e a paridade com medidas que promovam a corresponsabilidade em âmbito familiar e doméstico, o exercício pleno dos direitos sexuais e reprodutivos e a possibilidade de promoção de uma vida livre de violências [3]. Estamos falando de emancipação e a presença ampla, qualificada e competitiva na política vai gerar uma mudança simbólica em efeito dominó, alterando positivamente o imaginário das mulheres diversas em todos os espaços (mídia, economia, escola, praça, dentro de casa).
Partidos políticos, o principal obstáculo
É unânime: a baixa democratização interna dos partidos é um dos maiores entraves para a democratização do sistema político. As estruturas partidárias são pouco ou nada transparentes, sem mecanismos de controle externo – institucional, de eleitoras/res, filiadas/dos e entre partidos; e possuem baixíssima presença feminina nas instâncias decisórias e com reais poderes de decisão. Principal “porteiro” do recrutamento e valorização de candidaturas, as siglas tendem a ambientar uma estrutura hostil às mulheres, especialmente as negras, LGBTs, periféricas, indígenas, com deficiência, e à diversidade como um todo.
Nas realidades de muitos países latino-americanos, as elites partidárias reagiram às cotas com interpretações minimalistas e burocráticas dos dispositivos, com medidas de “última hora”; designação de nomes femininos para as praças mais longínquas ou eleitoralmente mais difíceis, distribuição tardia, desigual, autoritária e ilegal dos recursos públicos, além de práticas sexistas e discriminatórias, incluindo a desleal eterna promessa de apoio futuro.
Os partidos são necessários à democracia e sua autonomia precisa ser assegurada como valor democrático fundamental, no entanto, a liberdade organizativa não pode ser confundida com autorização para burlar a lei, travar a diversidade e sustentar critérios seletivos e excludentes, à revelia das leis e das demandas sociais.
Igualmente importante é valorizar os recentes esforços por mudanças, como a atuação mais intensa das setoriais de mulheres, iniciativas de paridade voluntária nas instâncias de poder e uma pequena descentralização de decisões sobre distribuição de recursos. Ações pontuais, mas que podem frutificar.
Sistemas políticos favoráveis e os mandatos de posição
Pesquisas e estudos mostram que o sistema de representação proporcional de lista fechada, mais do que os majoritários, seguidos dos sistemas mistos, são os mais favoráveis à seleção e eleição de mulheres (Norris e Lovenduski, 1995, Álvares, 2008, Sacchet, 2015) [4], especialmente quando combinados com uma cota forte, distribuição proporcional de recursos e controle da Justiça Eleitoral, além da cláusula do mandato de posição.
Os mandatos de posição são regras que estipulam a “posição” de candidaturas femininas no cumprimento do percentual de cotas, exigindo que estejam no topo da lista, não no final, onde normalmente são alocadas. No sistema de lista fechada, o dispositivo força o partido ordenar as candidatas de cima para baixo (em alternância de gênero), aumentando ostensivamente as chances de vitória eleitoral. As listas abertas, como no Brasil, também viabilizam o incremento de gênero, mas exigem firmeza no cumprimento dos marcos legais.
Novas propostas em debate
A Comissão Especial da reforma eleitoral da Câmara das Deputadas e dos Deputados debaterá diversos projetos, entre eles a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 134/2015, cuja teor pode gerar retrocessos na jornada da emancipação política. A PEC estabelece cota de acentos para mulheres nas três legislaturas subsequentes à promulgação da emenda: 10% na primeira, 12% na segunda e 16% na terceira.
São números baixos até para o histórico brasileiro de sub-representação. Significa projetar ao futuro o patamar atual (15%): muitas cidades e até o Congresso Nacional poderiam amargar a redução de eleitas, entre outras consequências negativas. Abaixo de 30% – quando se forma a massa crítica, mínimo capaz de gerar condição interna de disputa e agendamento – não há consistência. Se o debate é pra valer, então queremos escalonar de 30% a 50%.
Relatora da comissão, a deputada Renata Abreu (Pode-SP), ela própria autora do PL 2996/19 que desfigura o sentido das cotas propondo que as vagas fiquem vazias caso não preenchidas (assemelhado ao PL 4213/20 de Carolina de Toni – PSL), terá o desafio de conter os acirramentos provocados pela proposta de introduzir o sistema eleitoral majoritário para Câmara, o chamado “distritão”, que elege as candidaturas mais votadas, independentemente do partido. Debatido também em 2017, é considerado por especialistas a pior alternativa para a democracia, por fragmentar os partidos, encarecer as campanhas, e reduzir a representatividade e a renovação parlamentar, já que será mais vantajoso para nomes conhecidos e poderosas máquinas partidárias. Sem mandato de posição, vai na contramão da equidade.
Outros projetos incidem na distribuição dos Fundos Eleitoral e Partidário, com regras distributivas correspondentes às quantidades de representantes eleitos e de votos por partido, computando-se em dobro os votos de candidaturas femininas: PL5004/19(Margarete Coelho- PP/PI) e PL 4340/19 (Celina Leão PP/DF). A duplicata do voto é um recurso bem intencionado, mas infla a realidade e tende a deturpar regras importantes do sistema. Há também o PL1685/21 (Tabata Amaral – PDT/SP), que propõe um bônus financeiro pelos votos das candidatas. As siglas com votação maior que a média nacional, proporcionalmente, teriam 10% a mais de financiamento, e as que não atingissem o índice receberiam menos recursos. O PL exige discussão, mas pode ser um caminho para incentivar os partidos a trabalharem pela competitividade das candidatas.
Também tramita, já com aprovação da Comissão da Mulher, Projeto de Lei Complementar (35/19 de Sâmia Bonfim – PSOL/SP e Marcelo Freixo -PSOL/RJ e 109/19 de Gleise Hoffmann -PT/PR) que institui a alternância das vagas nos poderes legislativos entre homens e mulheres. A proposta vislumbra a paridade e talvez por isso mesmo enfrente mais resistências na tramitação. Pelo texto, os partidos políticos terão direito a tantas vagas quanto o respectivo quociente partidário indicar, na ordem da votação nominal das candidaturas, observada a alternância de gênero.
Todos os projetos e debates exigem nossa atenção, tanto quanto a ausência de propostas e estudos focados na redução das desigualdades de raça e classe, igualmente estruturadoras da sociedade e determinantes nas disputas eleitorais.
2022 vem aí
Não se pode delegar a definição das regras somente a quem se beneficiará delas. O debate social amplo é requisito para a aprovação de reformas que verdadeiramente qualifiquem o sistema eleitoral rumo à equidade tanto no exercício do poder quanto no imaginário social. A pressão junto ao Tribunal Superior Eleitoral, ao Congresso e aos partidos, para que exerçam cada um seu papel nesta jornada, virá da descarga elétrica democratizante dos movimentos, academia e organizações civis.
A América Latina é nossa casa, aprendamos com ela! É mais do que tempo de amplificar esse debate, levando-o do bastidor às casas, conversas e ações cotidianas. Política é coisa muito nossa.
*Juliana Romão é jornalista, mestra em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), estuda a inclusão de gênero na linguagem e a presença da mulher na política, é membra da PartidA e co-criadora do projeto Meu Voto Será Feminista. Email: julianagromao@gmail.com
[4] NORRIS, Pipa ee LOVENDUSKI, Joni. (1995), Political Recruitment: Gender, Race and Class in the British Parliament. Cambridge, Cambridge University Press
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