Fabiano Contarato*
Em 521 anos de história conturbada, o Brasil oscilou entre experiências democráticas curtas e terríveis rupturas ditatoriais, até alcançar maturidade como nação a partir da promulgação da Carta de 1988. Destacam-se três dos grandes méritos da nossa “Constituição Cidadã: a adoção de amplos direitos fundamentais que sepultaram a ditadura; a concretização progressiva dos direitos sociais à saúde e à educação, por meio da vinculação de receitas de tributos; e o estabelecimento de um regime de controle de “freios e contrapesos” entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário – sistema que tem o Ministério Público como vértice de excelência.
Não é por menos que parcelas das elites políticas tentam, a todo custo, minar esses três pilares da cidadania, já que os ventos da democracia moderna asfixiam os pactos com o Brasil do atraso. Os direitos e as conquistas sociais nunca estão a salvo: basta um cochilo na vigilância da sociedade civil para que anos de avanço se dissolvam no ar. Na democracia, é saudável cultivarmos a desconfiança, bem como valorizarmos a fiscalização ininterrupta dos governantes, sejam eles de qualquer partido.
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Os fundadores da democracia dos Estados Unidos da América, cujo ideário inspirou majoritariamente os modelos constitucionais do Ocidente, acreditavam que a tirania tinha seus pés fincados na concentração de poder e na falta de fiscalização. O poder não se contém por benevolência: deve ser contido e fragmentado, de modo que cada departamento do Estado exerça controle e seja controlado ao mesmo tempo, numa espécie de fiscalização mútua. É esse raciocínio que fundamenta essencialmente a tripartição de Poderes no pensamento de Montesquieu, em sua obra magna “O Espírito das Leis”.
O Ministério Público tem inúmeros problemas institucionais. O principal deles está na escolha de sua direção, confiada constitucionalmente aos chefes do Executivo. Ter um procurador-geral “dócil” e “de estimação”, para chamar de “seu”, é o sonho de todo corrupto e, desafortunadamente, uma vantagem à disposição dos governantes mal-intencionados. Com esse cabresto, os desvios podem correr soltos, sem qualquer incômodo, e, ainda assim, um agente público que cometa ilicitudes poderá propagandear que não há corrupção em seu governo. Ledo engano.
Não bastasse essa vulnerabilidade, parte do sistema político quer criar outras mais, instituindo um controle direto sobre investigadores por parte de políticos graúdos, geralmente investigados por seu envolvimento em esquemas criminosos. É exatamente o que propõe a Proposta de Emenda à Constituição nº 5/2021, apelidada corretamente de “PEC da Vingança”, derrotada semana passada na Câmara dos Deputados.
PublicidadeO Ministério Público não está acima de críticas: seu aperfeiçoamento pode e deve ser ambicionado pela sociedade brasileira. Ocorre que não se pode, a pretexto deste “aperfeiçoamento”, suprimir a independência funcional de seus membros. Ao contrário, deve-se garantir que ajam com desassombro no cumprimento de sua função, sem temer retaliações por cumprirem a lei. É preciso um alerta: os investigadores não podem criminalizar a política agindo de forma partidária e política, do mesmo modo que o sistema político não pode criar ofensivas para ceifar a independência do Ministério Público.
Apresentei projetos para melhorar esse cenário, como uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 52/2019) estabelecendo que o Procurador-Geral seja escolhido e nomeado pelo Presidente da República, entre membros do Ministério Público da União, a partir de lista tríplice encaminhada por integrantes da carreira. Hoje, a indicação parte do presidente da República. A imparcialidade inerente ao cargo fica fragilizada quando o PGR não é escolhido pela lista tríplice, quando o presidente escolhe a seu bel prazer e em desacordo com um dos princípios mais relevantes da República, a impessoalidade exigida no Artigo 37 da Constituição.
Também apresentei projeto de lei que confere a um órgão colegiado independente – o Conselho Superior do Ministério Público Federal – o papel de instância revisora dos atos do(a) Procurador(a)-Geral da República na investigação e no processamento de crimes praticados por altas autoridades, como o Presidente da República. O ordenamento jurídico atual não oferece remédios rápidos para inércia do Procurador-Geral da República. Diferente de outros ramos do Ministério Público e em vários Estados, não há previsão de instância revisora das decisões de arquivamento de investigações ou mesmo com relação à sua morosidade na realização destas investigações.
É preciso vigilância permanente contra os riscos de coalizões pluripartidárias engajadas na destruição do Ministério Público. Essas alianças constantemente – e não é diferente do momento atual – reúnem representantes do governo e de oposição, e não pretendem aperfeiçoamento algum. Levar investigadores ao banco dos réus não estará ao alcance dos brasileiros comuns, que, eventualmente, foram e são injustiçados por erros e abusos do sistema de justiça. Por interesses poderosos, a Câmara dos Deputados quase aprovou ontem, movida por corporativismo, mais uma medida para blindar agentes públicos de investigações legítimas. Afinal, aos amigos, tudo; aos inimigos, o peso da lei.
*Fabiano Contarato é professor de Direito e Processo Penal, delegado aposentado e, atualmente, senador da República filiado à REDE pelo estado do Espírito Santo.
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