João Paulo Martinelli e Gustavo Polido*
Sancionada em 24 de dezembro de 2019, a Lei 13.964 de 2019, decorrente do chamado Pacote Anticrime, dispõe sobre o aperfeiçoamento da legislação penal e processual penal vigente no Brasil. Muito embora alguns posicionamentos políticos do atual Presidente da República causem espanto aos sérios aplicadores do Direito, a legislação trouxe novas e positivas perspectivas e dimensões no tocante às garantias constitucionais que devem recair sobre a aplicação da lei penal e processual penal no Brasil, as quais, sem dúvidas, representarão um avanço no sistema democrático.
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O assunto que está causando maiores clamores, o chamado “juiz de garantias”, ao contrário do que propagam muitos, representa um avanço na persecução penal. O juízo de garantias não é nenhuma novidade jurídica, pelo contrário, sua existência é defendida há décadas no Brasil e sua operacionalização já ocorreu no Chile, Uruguai e diversos países europeus, principalmente por influência da Corte Europeia de Direitos Humanos.
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A existência do mencionado juízo de garantias em nada dificulta ou atrapalha o procedimento penal, senão garante maior distanciamento entre o juiz que irá julgar a causa e aquele que já se contaminara com a prova produzida em fase do procedimento investigativo. Aqui, devemos considerar que foi dado o primeiro passo para, finalmente, superar a fase do processo penal inquisitorial (estruturado na Idade Média e amplamente utilizado nos regimes nazista e fascista), para atingirmos a fase do processo penal democrático, como ocorre em diversos países, permitindo efetiva (ou mais próxima) imparcialidade daquele que irá julgar.
Frisa-se, brevemente, que o próprio texto legal menciona que o processo penal passará a ser acusatório, terminologia técnica que representa, efetivamente, que um réu deve ser considerado inocente até que haja efetiva condenação penal, amparada em provas produzidas por quem acusa, e não pelo juiz que irá julgá-lo (situação que comumente é vivenciada). Reestabelecem-se, portanto, as garantias constitucionais democráticas que há tempos foram deixadas de lado.
Destaca-se, novamente no sentido de demonstrar não se tratar de inovação absoluta e absurda, como muitos afirmam, que na comarca central do Estado de São Paulo, desde 1984 figura semelhante ao juiz de garantias já é exercida por algum dos juízes do DIPO (Departamento de Inquérito Policial). Estes magistrados atuam exclusivamente na fase de investigação e, após a conclusão do inquérito policial e oferecida a denúncia, são enviados para outros juízes atuarem na fase processual, até o julgamento.
A existência do DIPO na comarca central do Estado de São Paulo é a maior prova de que o sistema judicial brasileiro comporta, estrutural e orçamentalmente, a implementação em todo o território, sendo que, em Estados com menor verba, facilmente se pode solucionar a questão com o revezamento de juízes, onde um figure como juiz de garantias e outro como juízo do processo. Ou, ainda, em locais isolados, os juízes de comarcas vizinhas (menores, geralmente), podem fazer o mesmo sistema de alternância.
A nova legislação busca, claramente, manter maior imparcialidade daquele que irá julgar determinada pessoa, pois aquele juiz que toma conhecimento de todos os atos de investigação, automaticamente se contamina com o contexto investigativo. Afinal, ao autorizar uma medida cautelar (busca e apreensão, interceptação telefônica, quebra de sigilo bancário e até mesmo prisão temporária ou preventiva), o juiz se convence, ainda que preliminarmente, de que a pessoa investigada é supostamente autora de crime. Sendo, portanto, contaminado no momento da prolação de uma sentença, rigorosamente sua decisão deveria ser nula.
Não há necessidade de aumentar o orçamento do Poder Judiciário para a instalação do juízo das garantias. Basta que exista boa gestão dos valores já disponíveis. Segundo levantamento do próprio CNJ (Conselho Nacional de Justiça), a Justiça no Brasil consome 1,4% do PIB, enquanto na Alemanha, de acordo com o portal Deutsche Welle[1], o total é de 0,4%. No entanto, proporcionalmente, a Alemanha possui mais juízes por habitante que o Brasil (são 24 por 100 mil habitantes, contra oito em nosso país). A melhor distribuição de recursos permitiria a instalação dos juízos de garantia sem qualquer óbice orçamentário.
De tal forma, a correta separação entre juízo de garantias e juízo de processamento e julgamento, permitirá que o réu seja julgado por um juiz imparcial (ou, pelo menos, mais próximo da imparcialidade), que deverá se ater apenas às provas produzidas (e não aos motivos que levaram a produzir as provas que muitas vezes não se sustentam). Assim, poderá ser oferecido um julgamento com base nas provas colhidas em igualdade de condições entre acusação e defesa, regra processual penal que coaduna com um efetivo estado democrático de Direito.
*João Paulo Martinelli, advogado criminalista e doutor em direito penal pela USP; Gustavo Polido, advogado criminalista, mestrando em Direito Penal PUC/SP
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