*Bruno Salles
Uma nova lei aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pela Presidência da República (Lei Federal nº 14.064/2020), em pitoresca cerimônia que incluiu a participação de contrariados cãezinhos, traz uma ainda mais excêntrica alteração da Lei de Crimes Ambientais (Lei Federal nº 9.605/98), inserindo uma especial causa de aumento ao crime de maus tratos a animais, quando o objeto jurídico de proteção do delito se tratar de “cão ou gato” [1].
Trata-se de uma inédita causa de aumento, de um reconhecimento de reprovabilidade especial de determinada conduta, de acordo com a espécie biológica do animal que sofre abusos e maus-tratos.
> Depois de acenar com veto, Bolsonaro sanciona lei contra maus-tratos a animais
Ainda é muito controvertida a discussão sobre a ancoragem jurídica da legitimação da incriminação do crime de maus-tratos aos animais.
Leia também
Com efeito, há uma histórica discussão de que a proteção jurídica que se dá aos animais advém de uma proteção indireta do próprio ser humano, do seu sentimento e de sua moral, ou se mencionada proteção jurídica está relacionada a um dever estatal de proteção aos próprios animais. Essa é a posição de Luís Greco, quando advoga que “a proteção de animais é tarefa do Estado porque os animais possuem uma, ainda que restrita, capacidade de autodeterminação, sendo, portanto, irrestritamente vulneráveis à heterodeterminação”[2].
PublicidadeEm nossa legislação, o crime de maus-tratos está inserido da Seção I do Capítulo V da Lei de Crimes Ambientais, que trata dos crimes contra a fauna. A localização geográfica do delito, nesse caso, não traz grandes esclarecimentos sobre o bem jurídico protegido, já que o conceito de fauna é um conceito coletivo, que não tem a mesma especificidade da proteção que se dá em relação aos indivíduos que a compõem. Em outras palavras, naturalmente, quando se incrimina os abusos e os maus-tratos aos animais, não se espera que a tipificação do delito apresente uma lesão a toda a fauna na qual mencionado animal está inserido. A lesão a um indivíduo específico pode configurar o delito, de modo, por certo, não é a fauna que é protegida pela incriminação, mas, sim, o animal, ainda que individualmente.
Vale pontuar que, no caput do artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais, não se faz qualquer distinção sobre o tipo do animal, sobre sua origem, sua localização, sobre sua habitação ou sobre sua interação com seres humanos. Incrimina-se a conduta de “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”. No entanto, segundo a nova legislação, haveria uma reprovabilidade especial em relação a duas espécies biológicas específicas, os cães e os gatos.
Veja-se que a distinção legal sequer leva em conta os laços de afetividade do ser humano com o animal. Nesse caso, a distinção se daria por sua característica doméstica, o que já seria alvo de grande controvérsia, pois não se pode conceber como mais grave os maus-tratos a um animal de estimação do que os maus-tratos a uma espécie em extinção, como uma arara-azul, por exemplo.
A distinção legal é baseada, simplesmente, na espécie.
Obviamente, cães e gatos respondem pela maioria esmagadora dos animais domésticos. E como tais, é mais comum a sua relação afetiva com seres humanos. A maior parte de nossa sociedade tolera que um animal seja mantido em um cubículo sem poder se mover, durante a maior parte de sua vida, e que seja abatido antes da maturidade, quando se trata de um boi ou de um porco. Essa mesmíssima prática seria intolerável em se tratando de um cão ou de um gato. Portanto, não se ignora que o próprio conceito de abuso e de maus-tratos varia de acordo com as relações que os seres humanos, em geral, têm com as espécies. No entanto, essas são características gerais, que não podem definir a regra jurídica.
Não há justificativa plausível para se proteger com mais rigor a agressão ou tortura a um cão ou gato do que a agressão a qualquer outra espécie. Pela norma ora editada, um pássaro doméstico, um roedor ou um réptil deve ter menos proteção. Ainda que sejam domesticados. Ainda que se trate de um papagaio, de uma chinchila ou de uma iguana de estimação.
Trata-se de um critério que não atende a qualquer lógica e que, mais uma vez, reflete o dramático populismo penal que impera no Brasil.
A distinção de duas espécies animais em detrimento de todas as outras já seria o bastante para críticas à nova norma jurídica. No entanto, o que revela ainda maior consternação é o fato de que a qualificadora do delito impõe penas que variam de dois a cinco anos de reclusão, uma pena maior do que a de homicídio culposo (artigo 121, §3º, do CP) ou a de violência doméstica (artigo 129, §9º, do CP).
Sendo assim, hoje, nosso ordenamento jurídico penal considera mais reprovável agredir um cachorro do que agredir uma mulher, o que é absolutamente incompatível com a hierarquia de valores de nossa Constituição Federal.
Mencionada norma, de acordo com nosso sistema jurídico penal e constitucional, deveria ser declarada inconstitucional. Seja por seu preceito primário, que não justifica uma incriminação mais gravosa, apenas por se tratar de espécie específica, seja por seu preceito secundário que prevê penas absolutamente incompatíveis com o contexto de reprovabilidade do nosso sistema jurídico penal.
No entanto, em um contexto em que o populismo penal é cada vez mais forte no Brasil, há muita pouca esperança de que isso aconteça. Há poucas chances de a inconstitucionalidade da norma ser levada ao STF para controle de constitucionalidade concentrado. E, ainda que o fosse, seria improvável o reconhecimento da inconstitucionalidade da norma.
Com o populismo penal invadindo cada vez mais as cortes superiores, não seria impensável ver um ministro proferir seu voto ao lado de seu pet, ante os olhos sempre atentos da transmissão ao vivo dos julgamentos.
[1] “Artigo 32 — Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena — detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º-A. Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de dois a cinco anos, multa e proibição da guarda”. (Incluído pela Lei nº 14.064, de 2020)
[2] http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=26. Consultado em 30/9/2020.
*Bruno Salles é advogado criminalista, sócio do escritório Cavalcanti Sion Salles Advogados e mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.