Fabiano Angélico*
A declaração de Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados — “Tem que pegar um arcebispo para ser diretor [da Petrobras]?” —, é muito elucidativa a respeito da visão de alguns setores da classe política sobre questões relativas a integridade e governança.
Dois aspectos ficam claros quando se analisa a fala de Arthur Lira: a) regras para prevenir a corrupção são obstáculos indesejáveis e passíveis de críticas públicas e b) a defesa do interesse público em detrimento de interesses particularistas está ligado à religiosidade, à doação, a “fazer o bem”.
Após o escândalo do Petrolão — revelado pelo aparato estatal atuando de forma colaborativa e coordenada (Ministério Público Federal, Receita Federal, Polícia Federal, COAF) —, criaram-se regras de governança para as estatais de modo protegê-las de consórcios predatórios como aquele formado por PT e partidos do Centrão nos anos Lula-Dilma na distribuição interessada de cargos de diretoria na Petrobras.
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Uma das regras é a de que pessoas em cargos estratégicos, como a de Presidente da Petobras, não podem ter contratos com empresas do mesmo setor enquanto estive no cargo. Diferentemente do que diz Arthur Lira, é sim perfeitamente possível encontrar profissionais qualificados que concordam em abrir mão temporariamente desses ganhos do setor privado enquanto se trabalha no setor público —esse profissional certamente terá oportunidades profissionais interessantes no futuro, quando incluir no seu currículo o cargo de ex-presidente da Petrobras. Nenhum pecado aqui.
O novo consórcio do qual o Centrão faz parte, desta vez ao lado de Jair Bolsonaro, ultraliberais xiitas e militares que desonram a farda, já escapa dos controles social e estatal de diversas maneiras, principalmente com o desmonte dos órgãos de controle do Estado e com o ataque sistemático a pessoas e organizações que fazem controle social. O novo capítulo desse avanço predatório é em direção à maior estatal brasileira, aquela foi escoadouro de uma quantidade enorme de dinheiro nos anos PT — só para refrescar as memórias seletivas, apenas um gerente da Petrobras (ressalte-se: um gerente; isto é, alguém não muito alto na hierarquia), Pedro Barusco, devolveu R$ 157 milhões, dinheiro que estava depositado em contras secretas na Suíça.
Regras para prevenir e gerenciar conflitos de interesses estão previstas em convenções internacionais das quais o Brasil é signatário e são consideradas ferramentas poderosas contra a corrupção. No entanto, essas regras, na visão de certos setores da classe política, são obstáculos indesejáveis, que ensejam declarações indignadas como a de Arthur Lira. O que o deputado alagoano gostaria? Bem, parece que ele queria total discricionariedade, como no caso do orçamento secreto. Sem transparência, sem prestação de contas públicas (isto é, sem accountability).
O outro aspecto que podemos ressaltar a partir da fala do presidente da Câmara refere-se ao uso do termo “arcebispo”. O que o deputado quis dizer com isso essa referência? Então quer dizer que o melhor perfil para ocupar uma posição estratégica no setor público é alguém que não tenha valores como cuidado e amor ao próximo? É imprescindível ser profundamente religioso para atuar em prol do interesse público e não em prol de interesses particularistas? Isso foi uma crítica do deputado às pessoas caridosas e aos defensores de valores de religiosidade, um ataque ao “cidadão de bem”? Não podemos esquecer que muitos dos apoiadores de Jair Bolsonaro identificam-se como “cidadãos de bem”. Arthur Lira está com eles ou contra eles?
Arthur Lira precisa decidir de que lado está: ou o deputado é parte importante de um consórcio de “cidadãos de bem”, aqueles patriotas que atrasam compra de vacinas sem propina e avançam o sinal para comprar vacina com propina; ou ele acredita que cidadãos de bem devem ser descartados para a presidência da Petrobras?
A última janela de transferências partidárias demonstrou que o grupo que comanda o país, formada por “cidadãos de bem” que agridem verbalmente uma mulher torturada enquanto estava grávida, conseguiu atrair muitos parlamentares para a sua base.
Caso esse grupo permaneça no poder após as eleições de outubro, provavelmente serão removidos os últimos resquícios de boa governança no setor público. Corre-se o risco, por exemplo, de não termos qualquer “arcebispo” nas posições mais estratégicas das empresas estatais, incluindo a Petrobras, a partir de 2023.
*Fabiano Angélico é pesquisador da USI (Università della Svizzera italiana), na Suíça, e consultor internacional em temas de transparência e combate à corrupção e à lavagem de dinheiro (Banco Mundial, UNODC, PNUD, Transparency International). É doutorando em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV EAESP) e em Ciências da Comunicação pela USI. Mestre em Administração Pública e Governo pela FGV EAESP, tem especialização em Transparência, Accountability e Combate à Corrupção pela Faculdade de Direito da Universidade do Chile e graduação em Jornalismo na UFMG.
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