Roberto Livianu*
Os últimos dias foram marcados pela divulgação de importantes números de relatórios internacionais sobre Justiça Criminal e Corrupção, onde o Brasil aparece em posição extremamente difícil e preocupante, que merecem análise e profunda reflexão.
E desde já, incluo na reflexão o debate que está ocorrendo no Congresso sobre a mudança do Código de Processo Penal (CPP) brasileiro. Saliento, antes de mais nada, que o nosso CPP vigora desde 1941, ou seja, há quase 80 anos, vale para todo o país e é, nada mais, nada menos que o conjunto de regras instrumentais para a aplicação das penas criminais. Ou seja, disciplina o processo penal como um todo, regras de legitimação, direitos das vítimas, roteiro do processo, tudo que está compreendido neste complexo universo.
Afirmo categoricamente que não houve suficiente discussão e maturação deste tema envolvendo a sociedade civil, a Universidade, os estudiosos, as instituições e o projeto. Da forma como está não é nada bom, contém inúmeras idiossincrasias e gerará problemas, retrocessos, nulidades e obstruções à boa distribuição da justiça, com danos sociais indesejáveis.
Começando pelo WJP Rule of Law Index 2021, que examinou números de 139 países, de forma global se vê o Brasil muito mal situado sob os mais diversos recortes. Ocupamos a posição 117 e estamos, portanto, no pelotão dos últimos. São examinadas a efetividade das investigações criminais, duração razoável dos processos, capacidade de prevenção criminal, imparcialidade do sistema de justiça, existência de corrupção e respeito do devido processo legal.
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Em relação à efetividade e razoável duração do processo estamos na posição 133 dos 139 países, sendo campeões Noruega, Finlândia, Dinamarca, Áustria, Suécia e Alemanha. Observo que, excetuada a Áustria, todos os demais constam dos dez primeiros no índice de percepção da corrupção da Transparência Internacional, liderado pela Dinamarca (países menos corruptos do mundo) e isto não é mera coincidência.
PublicidadeMerece reflexão profunda o fato que o projeto de Código de Processo Penal em discussão propõe a implantação do juiz de garantias que pressupõe dois juízes – um que investiga na fase policial e outro instrutor na fase judicial. Isto já existe em São Paulo, mas em centenas de cidades há apenas um juiz e a distância entre as cidades é gigante e me parece que falta muita sensibilidade no sentido de se introduzir a mudança desta forma.
O CNJ poderia e deveria coordenar trabalho de longo prazo preparatório e adaptativo disto de pelo menos dez anos. É necessário todo um planejamento para esta transformação e dotar o sistema de justiça dos meios materiais para isto, sob pena de pior – e muito o que já está ruim. No projeto do CPP não há este cuidado, infelizmente.
No quesito imparcialidade somos os penúltimos do mundo 138/139. Nossos sistemas de justiça e de segurança adotam práticas seletivas e discriminatórias e insensíveis em relação a gênero, sexo, raça. Não existe efetividade e só estamos à frente da Venezuela. Retomando a análise do projeto de CPP, é fácil observar nos capítulos em que se propõe mudanças radicais nos crimes de competência do júri, que há gravíssimos riscos de retrocesso.
Suprime-se o juízo de admissibilidade – sumário de culpa de forma descuidada, não técnica, imprópria levando as acusações formuladas diretamente ao júri, com graves riscos de impunidade pela maneira como se redesenha os procedimentos para decidir crimes intencionais contra a vida, merecendo atenção a quesitação.
Nos Estados Unidos, por exemplo, há debate entre os jurados e, por isto, existe uma simplificação. Não faz sentido simplificar tudo num sistema em que jurados não se comunicam e, pela dinâmica proposta existem graves riscos de impunidade dos feminicídios, dos crimes raciais, dos homicídios por homofobia, etc.
Sobre seletividade punitiva vale registrar que em 2021 o Brasil viveu graves retrocessos no combate à corrupção, esmagando-se a lei de improbidade e da ficha limpa. Não mais se punem improbidades culposas (mesmo com culpa gravíssima), improbidades sem danos sem poucos casos e com danos só com prova do dolo específico. Os prazos de prescrição estabelecidos fluem num piscar de olhos e são curtos os prazos de investigação. Quis se estabelecer o direito à impunidade. Isto explica a queda de mais posições do Brasil no índice de percepção da corrupção da Transparência Internacional. Somos agora o 96 de 180. Interessante que no WJP, os menos corruptos são Dinamarca, Noruega e Finlândia. Isto corresponde ao ICP da TI.
Estes recortes sobre o projeto do CPP são alguns dentre tantos que poderiam ser apontados, que exigem análise mais apurada, não se podendo abrir mão de um Ministério Público forte, independente e com pleno poder de investigação criminal, do cuidado efetivo com a pessoa da vítima, prudência na implantação de um novo sistema de justiça criminal para que não estejamos semeando nulidades para colher um mar de impunidade.
*Roberto Livianu é procurador de Justiça, doutor em Direito pela USP, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção e diretor do Movimento do Ministério Público Democrático.
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