*Thiago Cardoso Henriques Botelho
Na semana passada (21/07/2020), foi derrubada a medida cautelar que proibia a comercialização de canais lineares por meio da internet. Contextualizando, em julho do 2019, a Anatel proibiu que empresas vendessem pela internet programação de conteúdo audiovisual similar ao distribuído na TV a cabo (na linguagem técnica da Anatel, a TV por assinatura se chama SeAC – Serviço de Acesso Condicionado).
Apesar de maçante, é importante definir as diferenças entre os serviços de telecomunicações. O serviço pelo qual o consumidor pode acessar sites e aplicativos é o SCM – Serviço de Comunicação Multimídia, popularmente chamada de internet. O SMP – Serviço Móvel Pessoal também permite acesso à internet, por meio dos celulares. O serviço que distribui conteúdo de audiovisual é o SeAC, como dito acima, popularmente chamado de TV por assinatura ou TV paga.
Além disso, é preciso esclarecer que conteúdo do SeAC não está na órbita dos serviços de telecomunicações. E são distinções feitas na própria legislação. No primeiro caso, no art. 61 da Lei nº 9.472/97, que define o Serviço de Valor Adicionado – SVA, aqueles que, de forma genérica acessamos pela internet, como sites e aplicativos. No segundo caso, o art. 4º da Lei 12.485/11, que define as atividades da cadeia de valor do mercado de TV por assinatura.
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Essas definições são importantes para caracterizar que na opinião deste especialista não há confusão técnica entra as duas atividades. Portanto, a oferta de um SVA de conteúdo audiovisual pelos donos destes, por meio de um serviço de telecomunicações contratado de forma separada (internet), não se confunde com a atividade de distribuição de conteúdo audiovisual, ainda que o conteúdo seja idêntico.
Podemos analisar também pela ótica do acesso. Segundo o último Panorama setorial de telecomunicações, publicado pela Anatel em março de 2020, são 33 milhões de acesso em banda larga fixa e 226,3 milhões de celulares, sendo que 69,7% destes tem acesso a tecnologia 4G. Então, podemos estimar 157,7 milhões de celulares com capacidade de consumir conteúdo audiovisual.
Por outro lado, temos apenas 15,4 milhões de acessos de TV por assinatura. Some-se a isso a capilaridade dos serviços que oferecem internet contra o SeAC e constatamos como a proibição da oferta de conteúdo audiovisual direta por meio de sites e aplicativos será prejudicial ao consumidor, pois reduzirá sua capacidade de fruir conteúdos desejados de forma seletiva, aprisionando-o em uma grade de TV paga.
Da mesma forma que mais consumidores têm acesso aos conteúdos audiovisuais disponibilizados diretamente por prestadores por meio de SVA, os produtores de conteúdo têm mais canais e um público muito maior para consumir suas produções.
Por essa ótica, os produtores terão uma forma muito mais fácil de apresentar seus trabalhos. Essa é uma das grandes maravilhas da internet: é gigante, permitindo que todos que produzam conteúdo busquem um modelo de negócio para comercializá-lo (sendo linear ou não).
Portanto, não parece fazer sentido querer restringir a oferta de conteúdo audiovisual ao mundo da distribuição em grades de programação ou pacotes fechados, quando temos a possibilidade da oferta mais favorável ao consumidor no mundo digital.
A tentativa de barrar os avanços tecnológicos para proteger mercados constituídos não é nova. Este fenômeno ocorre com frequência cada vez maior, dada a aceleração do desenvolvimento da tecnologia.
O novo destrói o velho: é a destruição criativa de Schumpeter. Temos diversos exemplos, como máquina de escrever x computador, pager x telefone celular e táxi x Uber. Mas nas telecomunicações tivemos caso parecido no confronto das empresas de telecomunicação x aplicativos de chamada por voz (como WhatsApp, por exemplo).
À época, as prestadoras de telecomunicações tentaram proibir o uso dos aplicativos de chamada por meio da internet, pois na argumentação delas “destruía valor” do mercado, sendo uma competição desigual, em razão das obrigações regulatórias e tributação, por exemplo.
Atualmente, as prestadoras de telecomunicações utilizam essas aplicativos como parte de sua estratégia competitiva.
Assim, é possível e muito provável que a oferta de conteúdo tornar-se-á um diferencial competitivo das empresas de telecomunicações, independente do tamanho, pois provedores regionais podem necessitar de conteúdo específicos para sua área de atuação geográfica.
Considerando que somente no Brasil são mais de 10 mil prestadores de SCM, podemos sonhar com um aumento de investimentos na produção de conteúdo, o que pode reduzir a necessidade do investimento estatal naquele mercado.
Por fim, concluo externando minha torcida para que o regulador trabalhe para proteger a competição e o consumidor, permitindo que novas tecnologias floresçam, possibilitando a expansão dos mercados. Modelos de negócios e tecnologias também têm seus ciclos de vida. Um dia acabam.
*Thiago Cardoso Henriques Botelho é mestre em Economia, especialista em Regulação de Serviços Públicos de Telecomunicações e Ouvidor da Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel.
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