Francisco Gaetani*
O fato de Lula ter falado de reforma administrativa na FIESP causou surpresa em muita gente. Essa reação, sim, foi surpreendente. Por que a surpresa dos surpreendidos? Por falta de conhecimento e desinformação. Como assim, se não aconteceu nenhuma reforma que chamasse a atenção nos oito anos em que foi presidente? Esta pergunta trai uma visão mágica, de big bang, para um assunto que em geral não é bem tratado por terapias de choque. Quem conhece a história sabe que, quase em silêncio, uma reforma do Estado brasileiro ocorreu desde a década 90, até chegarmos aos anos da destruição, a partir de 2019.
A mídia, boa parte da classe política, setores acadêmicos e defensores de uma visão minimalista do Estado reduzem a discussão de reforma administrativa a dois pontos: estruturas administrativas e gastos com o funcionalismo. Esta é uma abordagem muito empobrecedora das questões relacionadas à Reforma do Estado e por isso seus defensores não perceberam as mudanças que foram realizadas ao longo de 20 anos. E assim não viram as transformações que começaram com FHC e seguiram com Lula, que fez coisas que são subestimadas, de uma forma que chega a ser desconcertante.
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FHC começou o processo de constituição do núcleo duro da Administração Pública Federal, investindo sistematicamente nas carreiras de gestores governamentais, analistas de finanças e controle, e analistas de planejamento e orçamento. Retomou-se e consolidou-se o que fora ensaiado nos tumultuados anos do governo Sarney. Lula aprofundou e expandiu este esforço, levando-o aos Ministérios finalísticos, fundações, autarquias e estatais.
Até os anos 2000, muitos órgãos federais nunca tinham feito concursos públicos e outros estavam com seus quadros excessivamente envelhecidos. Nos anos noventa, várias instituições federais funcionavam com base em consultores contratados via organismos de cooperação técnica internacional. A partir de 2002, foram substituídos por profissionais concursados como nos casos de Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia, Educação e outros.
As áreas de infraestrutura, tecnologia da informação e políticas sociais foram contempladas com concursos inéditos para povoarem Ministérios que funcionavam com base em mecanismos de expediente estranhos à administração pública federal e em meio à multiplicação de cargos de confiança.
Lula arrumou os salários do funcionalismo estatutários do Governo Federal, instalando uma mesa de negociações salariais, tornando-os competitivos e atrativos frente ao setor privado – pecado imperdoável para muitos que acham que o setor público não pode e não deve pagar bem a seus funcionários (e depois não entendem problemas decorrentes de captura ou corrupção).
As agências reguladoras funcionavam com quadros recrutados temporários, uma distorção herdada do período de sua constituição, que geralmente desembocava em trens da alegria, na tradição clientelista brasileira. Todos os temporários foram substituídos por funcionários públicos selecionados com base em concurso público, de forma transparente e meritocrática.
Nesse período, o Governo disciplinou a ocupação de cargos de confiança na administração direta, estabelecendo percentuais robustos a serem ocupados por profissionais do serviço público. O intuito era assegurar que as organizações governamentais contassem com dirigentes minimamente familiarizados com o funcionamento do Estado, de modo a garantir a continuidade administrativa possível, mesmo com a mudança da orientação política do Governo.
Foi nesse Governo que a Controladoria Geral da União foi criada, estruturada, povoada, apoiada e dotada dos meios para atuar no controle interno do gasto público, a despeito dos desgastes e assimetrias que zelar pela integridade do gasto público podem gerar.
Mecanismos de participação popular foram introduzidos em diversas áreas temáticas, objetos de políticas públicas com impacto direto junto à população, como saúde, educação, cultura, meio ambiente, assistência social, ciência e tecnologia. Consultas públicas tornaram-se praticamente rotinas administrativas no processo de confecção de políticas públicas, para impaciência e exasperação de tecnocracias acostumadas a processos decisórios fechados e opacos.
Não se trata aqui de idealizar a Presidência de Lula no que se refere a temáticas afetas às discussões sobre reforma administrativa. São meras constatações. Muitos assuntos não foram enfrentados adequadamente ou foram abordados de maneira inacabada. A opção pelo PAC, baseada em um portfólio de projetos, se deu às custas do abandono de uma visão de desenvolvimento mais integrada com ancoragem regional.
A negligência em relação à supervisão ministerial das estatais custou caro ao Governo, com a eclosão de escândalos de corrupção em empresas não alcançadas pelos controles interno e externo. A desatenção para com a necessidade de se promover a revisão da legislação que trata da execução orçamentária financeira – a Lei 4320 é de 1964 – abriu caminho para uma crescente disfuncionalidade da contabilidade pública, que desembocaria na rejeição das contas governamentais de 2014, pelo TCU em 2016, e pelo circo de horrores do orçamento secreto, em 2022.
A cacofonia organizacional, no que refere a fundações, organizações sociais, serviço social autônomo etc só aumentou. A lista de pendências não é pequena, e não foi enfrentada por governos posteriores. Na parte de pessoal, a pouca coordenação dos esforços, aliada à pressão de grupos com mais força, levou a uma crescente desigualdade salarial e a uma política de reajuste sem padrões.
O próximo Governo se deparará com muitos temas relacionados aos temas afetos à reforma da administração pública brasileira. Lula, entre os candidatos, tem oito anos de experiência na condução de assuntos conhecidos por serem supostamente intratáveis. Esteve também doze anos fora da Presidência, sendo que em dois ficou preso – quando pôde observar o Governo visto de longe.
Lula exerceu a coordenação do Executivo em iniciativas como a criação do Bolsa Família e no enfrentamento da crise financeira internacional e da explosão do desmatamento, no seu segundo mandato. Dispensou às Forças Armadas e à Educação tratamento inédito do ponto de vista do atendimento orçamentário prioritário.
A reforma administrativa é apenas mais uma das múltiplas frentes em que o ex-presidente e atual candidato promete exercer o talento de negociar a expansão das possibilidades do país.
Seja quem for, algo que o Brasil mais precisa no momento é de um conciliador, capaz de permitir que o país flua, na direção do crescimento econômico inclusivo, no qual principalmente os mais pobres sejam contemplados com a possibilidade de um futuro.
*Francisco Gaetani é professor da Ebape-FGV e presidente do Conselho de Administração do República.org. Integra a lista dos 100 acadêmicos mais importantes do mundo pelo portal Apolitical