Rivana Ricarte*
A Medida Provisória n. 1.045, prestes a ser convertida em lei, tratava, em sua redação original, sobre geração de emprego e renda, apresentando um programa emergencial voltado à manutenção de emprego e renda no contexto da pandemia da COVID-19.
No entanto, o texto aprovado pela Câmara dos Deputados, em meio a uma série de violações e inconstitucionalidades, trouxe de modo inadvertido e perigoso gravíssimas restrições ao acesso à Justiça gratuita.
Enquanto os congressistas debatiam sobre alterações das regras das relações de trabalho no país, sem qualquer debate ou emenda parlamentar, surgiram acréscimos ao texto final da MP, trazendo enormes limitações para o deferimento da gratuidade de justiça no país sem nenhuma fundamentação idônea. Estamos falando de dispositivos que não têm qualquer relação com a medida provisória original: o art. 89, destinado a restringir direitos do trabalhador; do art. 90 voltado a restringir o acesso à justiça principalmente de aposentados e pensionistas, maiores litigantes nos Juizados Especiais Cíveis Federais; e dos artigos 91 e 93 que, por sua vez, trazem a restrição ao acesso de maior parte da população vulnerável e hipossuficiente, público-alvo das Defensoria Públicas dos Estados, Distrito Federal e União, em seus diversos processos na Justiça Comum ou Especializada.
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Não é demais recordar que o direito fundamental ao acesso à justiça integra o chamando mínimo existencial, razão pela qual sua materialização deve ser tomada como prioridade pelos órgãos de natureza política. Mas o que se vê é uma caminhada para o sentido oposto a essa garantia, em um ataque direto ao direito constitucionalmente assegurado de acesso à justiça.
A forma como foram inseridas as restrições ao acesso à justiça ofendem o disposto no art. 62, incisos I, ‘b’ e III, da Constituição Federal. Em relação à concessão da gratuidade de justiça prevista no Código de Processo Civil, a vedação é clara e direta, sendo com relação à Defensoria Pública a vedação decorrente do art. 134 da Constituição Federal que dispõe ser o serviço da Defensoria Pública regulamentado por lei complementar, garantida a autonomia administrativa da instituição.
De acordo com o texto, o acesso à justiça gratuita será limitado a renda per capita de até meio salário mínimo ou renda familiar mensal de até três salários mínimos (R$3.300,00). A quem interessa dificultar o acesso à justiça é uma pergunta que deve ser feita, ainda mais em tempos de profunda crise econômica e financeira de milhares de famílias.
Em meio a pandemia causada pelo coronavírus, muitas famílias tiveram queda drástica de rendimentos e muitos passam por grave crise decorrente da perda de familiares queridos. Durante o auge da pandemia, muitas famílias precisaram recorrer à Defensoria Pública para obterem atendimento médico, vagas em UTI e até mesmo a prestação de serviços essenciais que foram prejudicados com a crise geral vivida no nosso país. Caso essas famílias tivessem a limitação de renda trazida a partir do texto base do projeto votado, certamente não teriam o devido acesso à Justiça, acentuando ainda mais as suas vulnerabilidades e, por consequência, muitas vidas teriam sido perdidas.
Ademais, já está há muito ultrapassado o conceito de vulnerabilidade meramente no aspecto econômico e hoje é pacífico que a Defensoria Pública realiza um papel de verdadeira guardiã dos vulneráveis, tutelando segmentos da sociedade como, por exemplo, as pessoas com deficiência, idosas, enfermos, pessoas em situação de rua, dentre outros grupos vulnerabilizados. Essa mesma tutela não terá sentido se, por um lado o indivíduo tiver a assistência jurídica gratuita e de outro não obtiver a assistência judiciária deferida pelo Poder Judiciário por vedação legal.
A definição genérica e abstrata de critérios de concessão de gratuidade da justiça ofende a dignidade da pessoa humana, desconsidera realidades regionais, da forma como posta restringe o direito da população mais vulnerável em projeto que tem, em tese, o objetivo de promover a inclusão do trabalhador no mercado de trabalho.
Almejamos leis que venham efetivamente melhorar o Estado brasileiro e dar mais segurança a cada cidadão e cidadã. Na situação de calamidade pública como a vivida atualmente, certamente restrições como a que está proposta no projeto em análise impactará negativamente milhões de pessoas, acentuando ainda mais a vulnerabilidade social.
Agora o texto da MP 1045 segue para ser submetido à análise do Senado Federal. A ANADEP – Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos seguirá dialogando para que não haja retrocesso ao direito de acesso à justiça, nem qualquer restrição a gratuidade deste acesso.
*Rivana Ricarte é presidenta da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP)
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