A promulgação pelas Mesas do Congresso Nacional da PEC 23/2021, feita em 8 de dezembro de 2021, de forma “fatiada”, na forma da Emenda Constitucional nº 113, é uma afronta ao devido processo legislativo.
Em caso de Propostas de Emendas à Constituição, o mesmo texto deve ser aprovado, admitidas somente emendas de redação, voltadas a sanar vício de linguagem, incorreção de técnica legislativa ou lapso manifesto, em ambas as Casas, em dois turnos de votação, com o voto de três quintos de seus membros.
Esse princípio básico, e elementar, não foi observado, em face da “urgência” na promulgação do texto votado pelas duas Casas, e a pretexto de que as modificações feitas pelo Senado, objeto de “fatiamento”, serão aprovadas em plenário pela Câmara mediante o artifício de “apensamento” a uma PEC em tramitação naquela Casa (PEC 176/2012).
Quanto ao artigo 107 do ADCT foi aprovado, pelo Senado, mediante condicionamento, expresso no artigo 4º da PEC, de que o aumento do limite decorrente da nova regra de correção do teto de gastos, será destinado em 2021 exclusivamente ao atendimento de despesas de vacinação contra a covid-19, programa de transferência de renda, ou relacionadas a ações emergenciais e temporárias de caráter socioeconômico, e, no exercício de 2022, somente ao atendimento das despesas de ampliação de programas sociais de combate à pobreza e à extrema pobreza, à saúde, à previdência e à assistência social.
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O texto promulgado, porém, não contemplou o artigo 4º aprovado pelo Senado, mas, apenas, o texto aprovado pela Câmara.
E, sem o condicionamento aprovado pelo Senado, não poderia haver tal promulgação.
Mais do que isso, o texto do artigo 4º, promulgado, prevê apenas que:
– o eventual aumento dos limites resultantes da aplicação do disposto no inciso II do § 1º do artigo 107 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, no exercício de 2021, fica restrito ao montante de até R$ 15.000.000.000,00 (quinze bilhões de reais), redação com igual sentido ao do novo artigo 4º.
– no texto promulgado, esse limite será destinado em 2021 exclusivamente ao atendimento de despesas de vacinação contra a covid-19 ou relacionadas a ações emergenciais e temporárias de caráter socioeconômico. O texto aprovado pelo Senado prevê que, em 2021, será destinado exclusivamente ao atendimento de despesas de vacinação contra a Covid-19, programa de transferência de renda, ou relacionadas a ações emergenciais e temporárias de caráter socioeconômico, e, no exercício de 2022, será destinado somente ao atendimento das despesas de ampliação de programas sociais de combate à pobreza e à extrema pobreza, nos termos do parágrafo único do artigo 6º e do inciso VI do artigo 203 da Constituição, à saúde, à previdência e à assistência social. O texto do Senado, assim, é mais abrangente e inclui despesa não prevista no texto aprovado pela Câmara e promulgado.
– O § 2º do texto promulgado prevê que “as operações de crédito realizadas para custear o aumento de limite referido no § 1º deste artigo ficam ressalvadas do estabelecido no inciso III do caput do artigo 167 da Constituição Federal”, enquanto o texto aprovado pelo Senado fixa que essa regra somente será aplicável no exercício de 2021.
– Embora os demais dispositivos do artigo 4º, tenham redação similar o seu escopo é determinado pelo “caput” aprovado pelo Senado, que é essencialmente distinto do promulgado.
Afora esse problema, concreto, denunciado por vários parlamentares na Sessão Solene do Congresso que promulgou a Emenda Constitucional, há ainda outros, de menor monta, no artigo 100 da CF, tratados como “emenda de redação”, mas que também alteraram o mérito, e indicam o desrespeito aos limites para a promulgação fatiada, conforme os entendimentos já adotados em questões de ordem.
Também a cláusula de vigência foi objeto de alteração, remetendo a vigência imediata dispositivos que, na redação dada pelo Senado, vigorariam apenas a partir de 2022.
A solução adotada, que visa dar validade à Medida Provisória nº 1.076, editada na mesma data, evidencia um grau de oportunismo inédito; classificar o “benefício emergencial” adicional ao Auxílio-Brasil, criado pela Medida Provisória 1.076, como uma medida “emergencial e temporária de caráter sócio-econômico” com vigência em 2021, mas passível de prorrogação em 2022, é uma forma não muito sutil de cumprir a vontade das duas Casas.
Embora distintos os textos, sem a promulgação do art. 4º, o artigo 107 do ADCT, na forma promulgada, permitiria uma elevação no teto de gastos sem limitação objetiva, e sem qualquer vinculação de qualquer espécie quanto a sua destinação. A promulgação de um artigo que não foi aprovado pelas duas Casas, assim, seria solução “provisória”, vinculada à efetividade de decisão futura que valide, na Câmara, o texto oriundo do Senado.
O presidente do Congresso, após os protestos formulados, chegou a propor a supressão do artigo 4º oriundo da Câmara, que deveria ser examinado na forma proposta pelo Senado, evitando-se separação de trechos de dispositivo para criação de texto novo. Como bem demonstrado pela Senadora Simone Tebet, a promulgação, por óbvio, não atenderia ao que foi objeto de acordo durante a tramitação da PEC, visto que o artigo 107 do ADCT é intrinsecamente, vinculado ao artigo 4º, mas, ao final, em vista da “conveniência” de manter-se, ao menos, o que a Câmara havia aprovado, foi mantida a redação.
Já a estratégia do “apensamento” é um atalho que subverte a lógica do processo de exame de PECs, impedindo a manifestação da CCJC quanto à admissibilidade e da comissão especial, quanto ao mérito, visto que a PEC 176/2012, já foi apreciada em comissão, mas o parecer aprovado não foi sujeito, ainda, ao Senado. O “aproveitamento” desse processo revela a esperteza de atalhar-se o caminho, mas com a premissa (oculta) de rejeição do texto oriundo da Comissão Especial, ou de uma nova “promulgação fatiada”, caso aprovado, e remessa ao Senado do texto original da PEC 176/2012.
Essa falha ou inobservância aos requisitos de validade da PEC somente fortalece a tese de que o pragmatismo que vem orientando a atuação das Mesas da Câmara e do Senado acaba por gerar normas ilegítimas, irregularmente aprovadas e promulgadas, em detrimento da segurança jurídica e do direito de todos os membros do Parlamento ao devido processo legal.
A judicialização, sempre mal-vista, acaba por ser o meio para evitar tais excessos de poder, inevitável mas sempre sujeita à subjetividade de julgadores que, nem sempre, aceitam “pagar o preço” de defender a Constituição.
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