Felipe Carvalho*
Os dois anos de pandemia de covid-19 colocaram à prova aprendizados acumulados nos últimos 20 anos sobre distribuição justa de produtos essenciais de saúde. Infelizmente, não passamos no teste. Revivemos nesses dois anos situações de exclusão de populações inteiras, racionamento de vacinas e tratamentos, desigualdade de acesso e preços extorsivos que remetem aos piores momentos do enfrentamento de doenças como HIV/Aids, hepatite C, tuberculose, câncer, diabetes.
Por outro lado, esses dois anos também trouxeram à tona a importância das soluções que ativistas de saúde têm defendido nos últimos 20 anos para que o acesso a produtos essenciais seja realmente equitativo em todas as partes do mundo. Nesse sentido, ficou evidente a importância dos investimentos públicos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). Ficou mais frágil o argumento da indústria de que preços altos para medicamentos e vacinas são justificados.
Ficou evidente o prejuízo de saúde publica causado por regras de propriedade intelectual num momento em que há uma demanda global maior que a oferta de insumos que salvam vidas. Ficou claro que, mesmo numa situação de crise sanitária, as empresas atuam para controlar o mercado e bater recordes de lucro, independente do custo humano de suas decisões comerciais.
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Estamos ainda no limiar onde a história da resposta a esta pandemia está sendo escrita. Agora cabe aos governos definirem se será uma história de repetição de erros trágicos do passado e de falta de liderança política para implementar soluções, ou o momento de escrever um futuro com mais dignidade, solidariedade e ética.
Nesse aspecto, o Brasil tem a faca e o queijo nas mãos. A aprovação da Lei 14.200/2021 colocou o Brasil na vanguarda mundial do debate sobre como equilibrar regras de propriedade intelectual com a garantia do direito à saúde num contexto de emergência. No entanto, os vetos da presidência ao texto da lei e a demora do Congresso e derrubar estes vetos fazem cair por terra essa oportunidade histórica.
A lei amplia opções de compra do governo federal durante emergências sanitárias por meio do aprimoramento do licenciamento compulsório de produtos de saúde. Favorece um regime de concorrência que assegura economia de recursos públicos, transparência, melhores condições de negociação com fornecedores, menor risco de desabastecimento, coibição da prática de preços extorsivos no país e reforço da capacidade de produção local. Acima de tudo, a lei combate a desigualdade no acesso à saúde e ajuda a salvar vidas.
Poderia ser aplicada imediatamente para facilitar a compra dos medicamentos para a covid-19 que ainda não chegaram às prateleiras do Sistema Único de Saúde (SUS). Pessoas em maior risco, os ainda não são devidamente vacinadas, os que evoluem para quadros graves e todos aqueles que querem se prevenir da covid longa aguardam por esta oferta universal de tratamentos. Mas as opções de compra continuarão extremamente limitadas se o governo não utilizar a licenciamento compulsório.
Todas as vezes em que a licença compulsória foi utilizada no Brasil foram observados resultados positivos. Especialmente a ampliação do acesso da população brasileira a tratamentos essenciais e economias milionárias para o SUS. O Brasil nunca sofreu retaliações comerciais devido à regulamentação ou uso da licença compulsória.
No entanto, em uma situação de emergência, a licença compulsória precisa ser usada numa escala maior e assegurar que todas as informações necessárias para a reprodução de um medicamento, vacina ou insumo sejam repassadas de forma ágil. Para isso serve a nova lei 14.200/21.
Porém, os vetos presidenciais limitam a aplicação da lei, gerando incertezas sobre os prazos a serem observados no contexto da covid-19 e prejudicando o compartilhamento de informações técnicas necessárias para que novos fornecedores estejam aptos a suprir as lacunas de abastecimento.
O aniversário da pandemia é um momento para homenagear aqueles que se foram, demonstrar pesar e respeito pelas vidas perdidas. Uma das formas de prestar este tributo é justamente mudando os fatos que levaram a tantas mortes. Um desses fatos é o monopólio de poucas empresas sobre produtos essenciais de saúde. Podemos, simplesmente, agir com indiferença e pensar que eles são inevitáveis. Ou podemos nos indignar e transformar essa realidade. O Congresso Nacional já deu passos importantíssimos nessa segunda direção. Falta apenas o último passo, a derrubada do Veto 48. Esse passo não pode ser mais adiado. O que está em jogo é se vamos retroceder 20 anos ou avançar 20 anos na luta pela igualdade no acesso à saúde.
*Felipe Carvalho é o coordenador do GTPI (Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual) e da Campanha de Acesso a Medicamentos de Médicos Sem Fronteiras (MSF Brasil).
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