A centenária Yalorixá Luíza de Iemanjá, chamada carinhosamente por internautas e adeptos das religiões de matriz africana de Vó Luíza, tem chamado a atenção de muita gente devido sua história de vida. Nascida no interior de uma senzala, no sul do Brasil, numa sexta-feira santa, cujo o ano não se sabe ao certo, já que escravizados e seus descendentes não tinham direito ao registro civil, Luíza Moreira cresceu e testemunhou o desenvolvimento do Brasil e é assim que medimos a sua idade.
Um dia, navegando nas redes, encontrei um post falando a respeito de Vó Luíza, a reconhecendo como a mulher mais velha da Umbanda. Numa rápida busca no Google, encontrei diversas reportagens falando a respeito dela e de sua forte história de vida. Desde então, a vontade de conhecê-la só cresceu, até que, em 2018, tive a oportunidade de estar brevemente com ela e alguns de seus filhos de santo.
Como não consegui o contato de Vó Luíza previamente, fiz igual visita mal educada e cheguei sem avisar. Mesmo assim, sem ao menos saber quem eu era, Vó Luíza e seus filhos me receberam com muito carinho na Tenda de Umbanda Vovó Caxambi, localizada em Balneário Camboriú, no estado de Santa Catarina. E isso, por si só, já diz muito a respeito da líder religiosa e sua personalidade acolhedora. No dia do nosso encontro, Vó Luíza estava se preparando para uma gira que aconteceria em seu terreiro naquela noite e também para uma viagem que faria no dia seguinte ao Rio Grande do Sul, onde seria homenageada pela Câmara Municipal. Se eu chegasse no dia seguinte até lá teria sido uma viagem perdida, o que felizmente não aconteceu!
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Muitas vezes os líderes religiosos e pessoas de muito prestígio tem atitudes grandiosas e arrogantes. Estou bastante acostumada com isso, pois frequento muitos desses lugares. A minha expectativa ao encontrar com Vó Luíza não poderia ser diferente disso, mas tive uma grata surpresa e uma maravilhosa lição de vida quando a conheci. Nunca vou me esquecer de quando fui apresentada a vó Luíza. Eu pedi a sua benção, ela me abençoou e me pediu a benção também. Na hora eu só conseguia pensar: quem sou eu para abençoar a senhora? Pude observar bem o seu rosto e perceber que até os seus cílios eram brancos, denunciando que era mesmo longo o seu tempo de vida. Em seguida ela me levou até a cozinha e perguntou o que eu queria comer e se eu queria beber café. Eu disse a ela que não gostava de café. Ela então me perguntou: gosta de chá? E eu disse que sim. Na mesma hora ela própria me preparou um chá. E nesse dia eu percebi o quanto aquela mulher era e é especial, pois suas atitudes disseram, mais do que qualquer palavra, o quanto ela tinha a ensinar.
Com um vigor impressionante, Vó Luíza comanda sua casa de santo com muito amor e energia. Enquanto eu estava lá observando e fazendo anotações, chegou um rapaz com problemas de vício em bebidas e drogas. Ele estava chorando muito e dizia que precisava de ajuda. Vó Luíza, já incorporada em sua preta velha, Vovó Caxambi, rezou aquele pobre homem que, de um estado nervoso e completamente alterado, saiu dali calmo e sorridente.
Durante a sessão que ocorreu naquela noite, vi Vó Luíza trabalhando muito, ficando longas horas de pé, rezando pessoas que chegavam ao terreiro, abençoando seus filhos de santo, defumando o terreiro, todas as pessoas que estavam na sessão e trabalhando, pasmem, com sua pomba-gira, uma entidade que demanda muita energia física do médium. Tudo isso sem demonstrar nenhum sinal de cansaço. O segredo, segundo a centenária, são os Orixás, que dão saúde para que a mesma siga fazendo seu incansável trabalho.
Quando sentamos para conversar e pude entrevistá-la, Vó Luíza foi me contando sua história. Me disse que sua família costuma viver bastante, como seu avô que viveu mais de 120 anos. Ela conta que ele era escravizado numa fazenda de café e trabalhava amarrado por uma corda a um moinho. O trabalho dele era ficar dando voltas e mais voltas até que tudo estivesse moído. Essa é uma das lembranças da infância de Luíza Moreira. Ela contou também que, pelo fato de ter nascido numa sexta-feira santa, as pessoas acreditavam que ela tinha poderes curativos. Então, com menos de 10 anos de idade, chegavam até ela pessoas negras muito machucadas, provavelmente de castigos físicos, o que ela não soube confirmar. E cabia a ela por a mão sobre aquelas feridas ensanguentadas e rezar para que as pessoas se sentissem melhores. E assim ela fazia e, de tanto fazer, tomou certa rejeição até mesmo por comer carne, de tanto que via aquela cena traumática, sobretudo para uma criança.
Ainda pequena, Luíza Moreira viu seu avô preparar remédios e curar pessoas que eram mordidas de animais peçonhentos ou eram desacreditadas por médicos. Ela lembra que sabia coisas por si mesma, sem que ninguém houvesse a ensinado diretamente, como algumas rezas, cantos e remédios. Quando deu por si, aos sete anos de idade, dentro de uma igreja católica, incorporou o espírito de uma preta velha, com a qual trabalha até hoje, Vovó Caxambi. Depois passou a incorporar outros espíritos cujo nome não sabia, mas trabalhavam curando e ajudando as pessoas de sua comunidade.
Vó Luíza nasceu num tempo em que registro civil era coisa de branco. Ela conta que foi batizada quando já era “mocinha”, “uma cavala grande”, como se dizia naquela época. Depois, para que pudesse estudar, quando já tinha direito ao registro civil, sua tia precisou declarar uma idade menor do que ela tinha, pois se fosse mais velha perderia o direito de frequentar a escola. Ela conta os grandes acontecimentos que testemunhou, como o primeiro presidente do Brasil, o primeiro avião e, entre outras coisas, a abolição da escravatura no Brasil. Aqui é importante pontuar que, apesar de 1888 ser o ano oficial da abolição, precisamos levar em conta que esse processo não aconteceu na prática em todos os lugares do Brasil, levando anos para que a “lei pegasse” em território nacional. Ainda assim, isso não diminui ou desmerece em nada a história de Vó Luíza, ao contrário, nos diz muito sobre o quanto avançamos e quanto ainda temos que avançar para construirmos um estado de plenos direitos aos afrodescendentes brasileiros.
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