Diante de uma pandemia que afeta brutalmente a Educação, as condições alimentares e a proteção física e social de milhões de crianças e de jovens do Brasil, o governo federal segue empurrando a agenda do homeschooling. Colocado como uma das agendas prioritárias para 2021 – na verdade, a única prioridade educacional destacada pelo Palácio do Planalto e pelo MEC no início do ano – o Projeto de Lei 3179/12, que pretende regulamentar a Educação Domiciliar, avança na pauta da Câmara dos Deputados, apesar de flagrantemente equivocada.
Esta é uma pauta eleitoral e ideológica. Agrada alguns grupos religiosos e defensores mais reacionários do presidente, uma vez que priva os estudantes do convívio com outras crianças, jovens e adultos com visões de mundo e costumes familiares distintos. Sua própria tramitação é fonte de conteúdo para acionar a militâncias em grupos de WhatsApp e Telegram e nas redes sociais. Trata-se de um descaso cruel diante de tantas urgências que movem, ou deveriam mover, a Educação brasileira. Não poderia haver equívoco maior neste momento.
Somos um país de pouco mais de 200 milhões de habitantes, e aproximadamente 5 milhões de crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos simplesmente não tiveram acesso a atividades escolares – remota ou presencialmente. Há sequelas graves no atraso de aprendizagem em decorrência do fechamento prolongado das escolas, com diversos estudos calculando anos e anos perdidos que precisarão ser recuperados com planejamento, preparo e investimento em professores e em redes de ensino.
Escolas públicas necessitam de recursos para reabrir com segurança, o que exige uma ação séria e coordenada entre prefeitos, governadores, secretários de Educação e Saúde, profissionais da Educação, agentes da Saúde, famílias e, claro, o MEC. Para não falar de tantos outros temas estruturantes que deveriam estar tomando a atenção dos nossos gestores em Brasília. Mas não estão.
Vamos aos fatos. Primeiro: não há levantamento oficial que comprove uma alta demanda da população brasileira e justifique esse tema como prioridade governamental. Não se trata, claro, de proibir ou fechar os olhos para realidades distintas. Há casos em que a Educação Domiciliar é uma alternativa. Mas essas realidades não podem ser tratadas como regra, e sim como exceção.
Segundo: varia muito, de país para país, a legalidade da prática de crianças e adolescentes serem educadas em casa, por suas famílias, e não em escolas. Alguns deles (como Austrália, Canadá, EUA, Inglaterra e França) permitem sob regulação, e outros (como Alemanha, Argentina, Coreia do Sul, Holanda e Uruguai) a proíbem. Importa, porém, analisarmos a questão sob o prisma da realidade brasileira. E é evidente que, em nosso caso, dar centralidade a esse debate significa desviar o foco do que realmente importa.
PublicidadeTerceiro: mesmo em realidades distantes da nossa, em que a Educação já alcançou patamares de desenvolvimento considerados satisfatórios, o homeschooling tem apresentado efeitos negativos, como mostram resultados de estudos realizados em países europeus que já regularizaram a Educação Domiciliar. No Brasil, considerando o aparato atual do Estado para monitorar e regular os processos relacionados à Educação Domiciliar, é enorme o risco de a regulamentação beneficiar apenas um pequeno grupo de privilegiados e abrir espaço para comportamentos de risco na família, com o aumento do abandono escolar e maior exposição a privações e violência doméstica.
Quarto: muitos dos defensores do homeschooling parecem ignorar as reais funções de uma escola. Seu papel vai muito além do que está no currículo: inclui outros elementos fundamentais, como a socialização com outras crianças, a formação para a cidadania, o compartilhamento de valores e o pluralismo de ideias. A Constituição brasileira é clara: a Educação não tem apenas função técnica e deve ser tratada de forma sistêmica. E a escola é o melhor ambiente para que isso aconteça, sendo o único capaz de garantir uma Educação que celebre a diversidade e a pluralidade.
Quinto: além do seu papel de inclusão social, a escola é também um importante fator de proteção para crianças e adolescentes. É onde podem ser identificadas necessidades não supridas no ambiente familiar ou, até mesmo, casos de abuso doméstico.
Como sabemos, diversidade e pluralidade definitivamente não estão entre as preferências do atual governo – não à toa um defensor ardoroso do homeschooling como uma de suas bandeiras ideológicas. Afinal, o homeschooling representa o oposto da diversidade. É a celebração da uniformidade, da antipluralidade, do impedimento à diversidade e à ciência. É a contramão da formação de cidadãos tolerantes, acolhedores, antirracistas e respeitosos diante das diferenças ao seu redor.
O homeschooling é uma pauta ideológica porque abre espaço para doutrinação de crianças e jovens em espaços sem a observância externa, privando-os do contato com colegas e professores com visões de mundo diferentes, aumentando a intolerância e o ódio.
É a cara de um governo que tem a agenda ideológica como âncora de gestão, debate e conflito – basta lembrar seu recente histórico de intervenção ideológica em livros didáticos, de enfraquecimento das políticas de expansão da Educação Integração e de implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), de militarização da Educação e de perseguição a professores.
O homeschooling nega o século 21, como nega o desenvolvimento de competências socioemocionais, habilidades fundamentais para uma sociedade que se pretenda plural, democrática e tolerante.
Ainda há tempo de o Congresso barrar mais essa frente ideológica imposta à Educação brasileira. Precisamos canalizar nossas energias para a recuperação do ensino público, para a alfabetização das crianças até os oito anos de idade (a faixa de maior prejuízo pelo longo fechamento forçado das escolas), para a atualização da escola diante das demandas da nova juventude e para a valorização financeira, moral e profissional da figura do professor. Não é pouca coisa a fazer.
Por tudo isso importa dizer: Não ao homeschooling!
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