Há 23 anos, depois de ler entrevista de um tal de Olavo de Carvalho, de quem nunca tinha ouvido falar, não resisti, fui ao computador e, em vez de uma “carta de leitor”, redigi um artigo indignado sobre o entrevistado e o enviei sem compromisso à revista Educação. Para minha surpresa, a revista publicou meu texto com grande destaque, e ele mereceu efusivos comentários de leitores nas edições seguintes.
Diante da notícia da morte do “filósofo”, que teve a proeza de romper até com Bolsonaro – o que não é lá grande novidade pois os ex-ministros Abraham Weintraub e Ernesto Araújo andam queixosos de que Bolsonaro anda, digamos, “pouco direitista” – me lembrei do texto, que reproduzo abaixo para, à minha maneira, “homenagear” o morto ilustre:
O Imbecil singular
Quer uma receita legal para escrever um livro e garantir que ele seja lido, venda que nem pipoca, vire best-seller e renda uns trocados muito bem-vindos? Em primeiro lugar, escolha um tema de grande interesse, que mexa com o imaginário coletivo ou com a vaidade das pessoas. Algo que contenha munição a ser usada como prova de erudição e presença de espírito nessas recepções repletas de peruas. Mesmo que o tema seja de tratamento complexo, escreva de forma simples, direta. Não deixe de sentar o pau em alguns ícones culturais estabelecidos ou de grande destaque na mídia. Mexer com isso ou revelar um desprezo superior por essas personalidades é charmoso. Apresente-se como um inovador”, alguém que encontrou” uma nova forma de abordagem”, um autor que não teme “enfrentar os medalhões”. Coloque um título bacana, desses que caem bem nas rodas de emergentes. Auto-intitule-se filósofo, sociólogo, bruxo, parapsicólogo, uma coisa assim. Escolha um título que possa até não significar nada, mas esteja encharcado de “credibilidade”. Para rebater, de cara, as críticas que inevitavelmente virão, coloque no começo do livro um bom anteparo. Bem mesmo é tascar uma crítica antecipada, em que o próprio autor se considera “um sujeito cheio de ressentimento e inveja, alguém que não compreende os caracteres da cultura brasileira e é dotado de maquiavelismo autopromocional” (como fez o “homenageado neste texto). Pronto. Eis aí a fórmula mágica. Para a editora, é garantia de best-seller. Para o autor, com certeza, vai pintar um convite para alguns desses talk-shows da TV onde vai dizer umas palavras sobre o tema. Com sorte, termina até abrindo a casa para a revista Caras.
Os leitores desse tipo de best-seller viverão a ilusão de estar partilhando do reduzidíssimo círculo dos que têm acesso à última novidade na área cultural. O que pode até não significar lhufas, mas soa bem. Quando chegar numa livraria, dê uma olhada na lista dos mais vendidos, com certeza encontrará uma meia dúzia desses livros. De dois em dois meses eles são substituídos por outros, na mesma linha. Os anteriores, quase sempre, repousarão para sempre no esquecimento. Y así pasan los dias.
Um bom exemplo desse truque é O Imbecil Coletivo, do individual Olavo de Carvalho, que já vai para a sexta edição (como irão para a décima, a vigésima ou mesmo a quinquagésima todas as obras-primas da lavra de Paulo Coelho. É a mesma coisa). Não li O Imbecil Coletivo como não li nada de Paulo Coelho. Elitismo? É, pode ser. Li, sim, a entrevista do “filósofo” Olavo de Carvalho que saiu no número 219 da revista Educação, sobre O Imbecil Coletivo. Curioso: a revista Educação sempre me pareceu uma publicação séria. De repente, derrapa abrindo espaço generoso demais para um punhado de baboseiras gratuitas que têm como único objetivo chocar e vender papel editado em forma de livro. Se não, vejamos:
Em primeiro lugar, em destaque, o autor afirma que os jornais devem ser lidos e analisados em sala de aula, sobretudo para mostrar o quanto mentem. Bem mais interessante seria levar o jornal para a sala de aula para analisar a realidade brasileira, chamando a atenção para a necessidade da participação dos estudantes no processo de construção da cidadania. Dizer genericamente que os jornais mentem, além de constituir grande injustiça com jornalistas comprometidos com a verdade – e formam a maioria -, é apenas contribuir para o emburrecimento e a alienação. Não é novidade que os jornais mentem. Filósofos também, e muito, aprendi agora.
O sr. Carvalho, do alto de sua empáfia, lembra que um tal de Pelino Guedes – que seria contemporâneo de Lima Barreto – era muito lido por volta de 1910. Hoje, diz ele, ninguém lembra de Pelino Guedes, mas Lima Bareto é motivo de atenção. Até aí morreu Neves. O diabo é quando o sr. Carvalho investe contra Zuenir Ventura, Leonardo Boff “e todas essas nulidades esplêndidas que, por mero espírito de patota política solidária, o lobby da mediocridade esquerdista impinge aos nossos meninos de escola”. Então, tá. Quer dizer que a meninada devia estar lendo apenas Gustavo Corção, Plínio Salgado, Roberto Campos (que, aliás, é muito bom) e outros luminares da direita? Sem ironia: não dá pra sugerir pelo menos um meia-esquerda tipo Quarentinha, Roberto Rivelino? Curioso é que o sr. Carvalho conseguiu a proeza de viajar no tempo a ponto de saber o que prevalecerá no futuro. Não diz quem não irá. Mas assegura (e para isso deve ter uma bola de cristal deste tamanho) que Zuenir e Boff irão para o lixo da história. Além de filósofo, futurólogo. Segundo Ernesto Sábato, é bom esperar dez anos para saber se vale a pena comprar um livro. Seria bom conferir se daqui a dez anos alguém irá lembrar de… de quem mesmo?
Ingênuo, nosso filósofo afirma com todas as letras que “o nome de Roberto Marinho, hoje, só serve para disfarçar sob uma fachada direitista o poder do lobby esquerdista que domina tiranicamente a Rede Globo”. Quer dizer que a Globo é de esquerda? Desde quando, meu mano? Em que planeta? De que galáxia?
Mais uma do sr. Carvalho. Às tantas, afirma, peremptório, que “a atual geração de professores, que prefere Zuenir Ventura a Alberto da Cunha Melo e Caetano Veloso a Bruno Tolentino, será objeto de riso dos nossos bisnetos”. Agora, vem cá: Bruno Tolentino, Bruno Tolentino… Esse nome não me parece estranho. Alguém além do Túnel Rebouças, sabe de quem se trata? E que apito toca Alberto da Cunha Melo?
Mas isso é outra história. Nos estertores de sua ruminação, o “filósofo” Carvalho investe contra Paulo Freire e seu método, elogiados (ele e o método), pelos mais importantes intelectuais do mundo. Para o sr. Carvalho, Paulo Freire “é um sujeito oco, tipo acabado do pseudo intelectual militante; um dia teremos vergonha de ter dado atenção a seu método, que é uma porcaria”.
Olha, é bem capaz da profecia do Sr. Carvalho se realizar a e a gente um dia ter vergonha de ter dado atenção a Paulo Freire. Já eu, pobre de mim, com certeza terei vergonha de ter perdido tempo e indignação para escrever isto aqui com tanta coisa melhor com que ocupar meu tempo.
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