Neste 1º de dezembro, Dia Mundial de Enfrentamento à Aids, as perspectivas não são as melhores para 2023. Já sabemos que, do jeito que vamos, não alcançaremos as metas globais acordadas para responder ao HIV e à Aids e o novo relatório do Unaids, divulgado nessa terça-feira (29), sabiamente intitulado “Desigualdades Perigosas”, apenas confirma o que nós, da Gestos, já vínhamos alertando há décadas: só enfrentando as desigualdades estruturais será possível vencer a Aids.
Não é à toa que a nossa missão é: “Fortalecer os direitos humanos, sociais, econômicos, culturais e ambientais para contribuir com a superação do HIV e da Aids e com a construção de sociedades democráticas, equitativas e de paz”.
Poderíamos nos regozijar pelo o fato de estarmos sempre à frente, quando pensamos em Aids. Mas não cabem aplausos, diante do drama que é sabermos, dizermos e não sermos escutadas. Em 2014, quando representamos a sociedade civil da América Latina e Caribe, foram inúmeros alertas aos países membros da ONU: precisamos falar de desigualdades para falar em Aids. Não foi por falta de aviso!
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Agora, olhando para o futuro, precisamos correr atrás do prejuízo. Principalmente porque a existência de tratamento para o HIV não garante acesso a todas as pessoas que necessitam e temos nos deparado com o aumento de novas infecções e mortes evitáveis em diversas partes do mundo, sobretudo nos países mais pobres. Agora, sete anos depois dos nossos inflamados discursos na ONU, o novo relatório do Unaids revela que as desigualdades são a principal razão para tal.
Mas espero que não seja tarde demais e torço para que essa consciência tardia de que desigualdades raciais e de gênero junto com as restrições financeiras atrasam o fim da epidemia de Aids sirva para fomentar um senso de urgência para lidar com o HIV que parece haver se perdido no tempo. Em 2008, a Gestos lançou o primeiro livro no Brasil sobre a relação entre a violência de gênero e a AIids, com base numa pesquisa quali-quantitativa que fizemos junto às mulheres que atendíamos e, 14 anos depois, ler que em áreas onde há altos índices de HIV, as mulheres submetidas à violência por parceiros e familiares tem chance 50% maior de serem infectadas pelo vírus, não é nenhuma novidade.
Ter organizações e movimentos de direitos das mulheres na vanguarda dessa agenda, não foi, não é e nem será suficiente. É necessário também que líderes mundiais e tomadores/as de decisão apoiem e se comprometam com essa agenda, reconhecendo a expertise da sociedade civil neste processo.
É preciso também romper com os erros históricos cometidos ao longo dos 40 anos da epidemia de AIDS, tais como a discriminação, a estigmatização e a criminalização das populações em maior situação de vulnerabilidade ao HIV. Não houve diminuição significativa nos índices de novas infecções entre homens gays e homens que fazem sexo com outros homens (HSH); Mais de 68 países ainda criminalizam as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo; e onde as leis anti-LGBTQIA+ são mais repressivas, os HSHs têm até três vezes menos chances de descobrir suas sorologias. A dificuldade em acessar um diagnóstico precoce tem levado à morte precoce de muitas pessoas que poderiam estar aqui hoje, enquanto escrevo.
Igualmente grave é saber que podemos vencer as desigualdades, assim como podemos vencer a Aids, mas o que temos visto são os governos se movendo em câmera lenta para fazer o básico: garantir acesso à educação, saúde e segurança; garantir, ao menos, um pouco de qualidade de vida e condições mínimas de dignidade humana. Faz tempo que mostramos como resolver a ganância em torno das patentes para garantir acesso ao tratamento; já perdemos as contas de quantas evidências produzimos sobre a urgente necessidade de descriminalizar orientações sexuais não-heteronormativas e assegurar direitos às profissionais do sexo, além de possibilidades de redução de danos para usuários de álcool e outras drogas.
Mas, ainda que seja um processo de repetição, temos insistido em dizer que é estratégico investir e fortalecer as organizações da sociedade civil e os serviços liderados pelas comunidades e que os recursos para lidar com as desigualdades relacionadas ao HIV deveriam ser prioritários. Em 2021, por exemplo, o financiamento disponível para os programas de HIV em países de baixa e média renda estava abaixo dos US$ 8 bilhões.
Aqui no Brasil, a situação não é mais animadora, particularmente depois da aprovação da Emenda Constitucional 95 e de todas as crises provocadas pelo desgoverno Bolsonaro. Ainda bem que recentemente temos lido nos noticiários que “é a hora colocar o povo de volta ao orçamento publico”. Priorizar a saúde e o bem-estar de todas as pessoas, especialmente as populações mais vulnerabilizadas pelas desigualdades nunca foi tão urgente. E há solução? Sim, muitas.
Por exemplo, há anos que nós, da Gestos, dialogamos com tomadores/as de decisão e com a comunidade internacional defendendo a necessidade de democratizarmos a economia, através da taxação sobre transações financeiras e sobre produtos danosos à saúde, da tributação progressiva sobre grandes fortunas e da criação de mecanismos de financiamento para o desenvolvimento sustentável (em alinhamento com a Agenda 2030). Essas iniciativas poderiam nos tirar da dependência da doação voluntária de países ricos, abrindo espaço fiscal para investimentos nacionais que alavancariam todos as metas de desenvolvimento sustentável nos países de baixa e média renda, que foram historicamente expropriados de suas riquezas e hoje estão com seus orçamentos profundamente comprometidos por dívidas substanciais justamente com os países que os assaltaram.
Só em 2021, 650.000 vidas foram perdidas para a Aids e o mundo assistiu a 1,5 milhão novas infecções pelo HIV. Verdade seja dita, acabar com a Aids é muito menos caro do que levar essa epidemia por mais 40 anos. E é menos uma questão de falta de recursos do que um problema de falta de decisão política. Quanto mais tempo esperarmos, mais ainda teremos que esperar e o que ainda precisamos perder para finalmente, fazermos o que sabemos que precisa ser feito e investir nossos recursos públicos onde eles precisam ser colocados?
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