“Há muitos anos, percebi de repente que o país a que pertencemos não é, como quer a retórica mais
corrente, o país que amamos, e sim aquele do qual nos envergonhamos” – Carlo Ginzburg
Enquanto não editada nova legislação de defesa do regime democrático e de suas instituições é com a Lei de Segurança Nacional que temos que ir. A Constituição Federal de 1988 foi bastante parcimoniosa na proteção jurídica das instituições democráticas, limitando-se a estabelecer no art. 5º, XLIV, que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”. Comando, aliás, que não foi implementado pelo legislador até o momento.
Quando o STF instaurou inquérito contra atos antidemocráticos e, mais recentemente, determinou a prisão em flagrante de deputado federal com base na famigerada Lei de Segurança Nacional, a possibilidade dessa legislação ganhar celebridade e se propalar era meio inevitável. Como rastilho de pólvora foi empregada até mesmo por quem não detinha atribuição legal, como o delegado de polícia civil do Rio de Janeiro que intimou famoso youtuber para visitar sua delegacia por ter chamado de genocida o presidente da República[1].
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Num país em que se consagrou a frase “aos amigos tudo, aos inimigos a lei” estava meio dado que isso era apenas questão de tempo. Os tempos, a propósito, são outros e a ordem democrática instituída em 1988 parece não contar mais com o decisivo apoio de toda sociedade, estando, ao contrário, sob ataque por parte de extremistas.
A proteção do regime democrático e de suas instituições assume, assim, importância crucial para o futuro da própria democracia e, curiosamente, o diploma legal mais vocacionado a essa proteção é exatamente a Lei 7.170/83 – Lei de Segurança Nacional. Embora contenha um ou outro dispositivo que pode indicar compatibilidade parcial com a Constituição, a LSN estabelece um conjunto de crimes agrupados, especialmente entre os artigos 18 a 29, que têm permitido a responsabilização penal de agentes que desafiam a ordem democrática.
PublicidadeCerto, a doutrina da segurança nacional e do regime autoritário que a LSN evoca fazem muitos “colocarem as barbas de molho”, e com razão, afinal, o passado nos condena, como gosta de lembrar o ministro Roberto Barroso. A aplicação dessa legislação pelos gendarmes estaduais, quando não pelo próprio Ministério da Justiça, tem trazido justa preocupação pelo uso abusivo e com traços de desvios de finalidade, que tem notabilizado vários casos[2], os quais invariavelmente desafiam a jurisprudência do próprio STF no sentido de que a crítica ao poder, corolário da liberdade de expressão, deve ser a mais ampla possível no Estado democrático de direito (ADI 4451/DF).
Todavia, experimenta-se um certo sentimento de justiça quando facciosos são levados à barra dos tribunais por suas ameaças contra a democracia e suas instituições. Não têm faltado ataques à ordem democrática desde as eleições presidenciais de 2018. Com a abertura da caixa de pandora do autoritarismo tupiniquim, inúmeros seguidores do homem que fez o discurso da ponta da praia[3] atentam abertamente contra a ordem democrática, elevando a pressão sobre o sistema de justiça.
Como escreveu Abramovay, “Há uma mudança clara na sociedade. Um defensor explícito da tortura, da ditadura e da homofobia não seria eleito em um Brasil relativamente recente. Algo mudou na tolerância da nossa sociedade com esses valores antidemocráticos. O autoritarismo latente na nossa história tornou-se novamente desavergonhado – talvez fruto da forte polarização como aponta Ferraz – e não há como negar que isso represente um terreno muito fértil para que ataques à democracia deixem marcas profundas em nossas instituições”[4].
Nesse contexto de insultos sistemáticos às instituições democráticas[5], devemos, ou melhor, podemos prescindir da LSN? Muitos, como o editorial da Folha de São Paulo de 21/03/2021, defendem a sua revogação, preconizando eventual utilização da Lei de Antiterrorismo (13.260/16) e da própria legislação penal comum para barrar ameaças à democracia.
É duvidoso que a Lei de Antiterrorismo possa cumprir essa missão. O escopo de sua abrangência normativa, artigo 2º, e o disposto no seu § 2º, que afasta expressamente do seu espectro manifestações de natureza política, revelam sua inadequação para proteção da ordem democrática. Mas ainda que assim não fosse, ter-se-ia o mais perigoso: não se poderia afastar o efeito “guarda da esquina”, que tanto assusta na utilização da LSN, com enorme potencial de danos para a própria democracia. Ao fim e ao cabo, trocaríamos seis por meia dúzia, e os riscos continuariam os mesmos. E é insensato, por outra, achar que podemos confrontar detratores da CF/1988 com os crimes contra a honra, previstos no velho Código Penal. Aqui, a insuficiência de proteção jurídica seria enorme.
A ascensão do populismo de extrema direita tem colocado sobre as instituições de Estado e o Supremo Tribunal Federal, em particular, dilemas institucionais de rara complexidade. Entre as difíceis escolhas está a que a Corte se debruçará em breve: a recepção ou não da Lei de Segurança Nacional (objeto das ADPFs 797, 799, 815 e 816).
Já nos adiantamos. Abrir mão da LSN, nesta altura dos acontecimentos, é abrir mão de um instrumento potencialmente eficaz. Claro que o uso abusivo dessa Lei pelas forças policiais abrem flanco na democracia. No julgamento que se avizinha, o STF bem poderia estabelecer parâmetros mais exigentes para sua aplicação:
a) lembrar, de partida, sua ampla e uníssona jurisprudência em prol da liberdade de expressão e do direito à crítica ao poder, deixando bem nuançado que uma coisa é a crítica ao poder, outra bem diferente é conspirar contra o regime democrático, interditando que instrumentos da democracia sejam utilizados contra a própria democracia. Em outras palavras: assentar que a liberdade de expressão não tolera os inimigos da democracia tout court;
b) restringir fortemente a prisão em flagrante pelas forças policiais, inclusive sob pena de responsabilização funcional, como já fez em relação ao uso de algemas (súmula vinculante nº 11) e à realização de busca e apreensão domiciliar (RE 603.616/RO). E o mais importante, não esquecer a lição da história. Lembrar que a ascensão do nazismo ocorreu sob a fleumática república de Weimer, levando Goebbels a dizer que o aspecto mais risível daquela república é que ela oferecia a seus inimigos mortais instrumentos democráticos para substituí-la por um modelo autoritário[6]. O ovo da serpente do autoritarismo já está inoculado em parte da sociedade brasileira, não é hora de deitar por terra o diploma legal que pode contribuir para arrostar nossos piores pesadelos.
[1] Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2021-03-16/felipe-neto-e-intimado-a-depor-com-base-em-lei-de-seguranca-nacional-heranca-da-ditadura.html>.
[2] Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/03/jovem-e-preso-em-minas-gerais-por-publicacao-em-rede-social-sobre-visita-de-bolsonaro.shtml?origin=folha>;
<https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/manifestantes-presos-bolsonaro-genocida/>
[3] Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/12/bolsonaro-fez-referencia-a-area-de-desova-de-mortos-pela-ditadura.shtml>; <https://epoca.globo.com/guilherme-amado/bolsonaro-sugere-lugar-de-execucao-da-ditadura-paraservidores-publicos-1-24056200>
[4] Pedro Abramovay, “A Correia de transmissão do autoritarismo no Brasil de Bolsonaro”, El País, 25/01/2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-01-26/a-correia-de-transmissao-do-autoritarismo-no-brasil-de-bolsonaro.html>
[5] Recentemente, no dia 09/04/2021, o PR atacou verbalmente ministro do STF, contrariado com decisão liminar que determinou o cumprimento ao disposto no art. 58, § 3°, da CF. Disponível em:
[6] Alaor Leite, Webinário. “Liberdade de Expressão: vale tudo ou há limites?”. Instituto FHC. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=2JMvQkGtvGc>.
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